nasceu assim: brotou. eu não esperava, eu não planejei. e veio. instalou-se no lugar que escolheu ou que deu. numa fresta mínima minha. ficou ali, parada me provocando. eu fechei os olhos e ela não desapareceu. eu gritei e ela não correu. ficamos as três então: a palavra eu, a dor e uma florzinha.
a moça dos cabelos lisos e loiros apareceu. me meteu num saco de lixo e sumiu. minha preceptora não sabia de nada e por isso eu passei a noite ali. no outro dia ela deu falta de mim e me procurou. me encontrou confinada numa sacola de supermercado. me tirou do sufoco, cortou minhas partes mortas e me botou num vaso de barro. dos mais velhos e úmidos. melhor que o anterior. fui morar na rua, onde o sol bate e a moça dos cabelos lisos e loiros não vai. pra não estragar a escova. e não amarelar a platina. estou feliz e tranquila.
no ano de 2017 eu não escrevi. e não li. mas criei filhos, cozinhei e não dormi. doei todo o meu tempo, e desliguei as palavras - pra ficar só o gesto, o barulho e o silêncio do léxico.
resistindo em estado de contigência: as plantas espontâneas e eu, a geminiana. nós, mães de outras. nós, que desbravamos o caminho sem a certeza do como, do passo e do resto. nós, num acontecimento épico, assistentes do solo que emoldura o gesto.
eu não sei por onde começar. então começo sem saber, começo pelo descomeço. tem gente que diz que eu já comecei, e eu também às vezes me digo isso. então eu ando pelo pátio, sobre as pedras do chão de mato. eu vou e eu volto. diversas vezes, sem calcular. e cada vez que volto, volto diferente. mas sem o começo.
(o meu andar está o tal começo: é só isso que hoje ele é. por ora, o único caminho).
- Se eu fosse um escultor, esculpiria aquele toco. Estou vendo nele o rosto de um deus sumério. - Pois eu, se fosse artista, exporia esse toco do jeito que ele está. Estou vendo o rosto do deus sumério. Perfeitamente.
pensa
no mato sem cachorro, na morte da bezerra, na volta do bumerangue, na
força estranha da formiga, na poeira que flutua invisível, na fumaça que
sobe às barbas do vento, na circunferência da ervilha, no raio do ovo
galado, na tonga da mironga, na desmatéria do ritmo.