quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

trapiche do amor

estava em alto mar. de repente uma onda veio do nada e estourou. incrível é que ali não havia rebentação - mas isso agora não importa. o que importa é que a onda o arrastou até o trapiche do amor. foi como que vomitado pelo mar. não houve espera nem pavor. só houve o barulho das águas e o som de um ventilador. daí foi ele quem vomitou, de tão desconcertado. não entendia a situação e, quando percebeu onde pisava, achou aquilo assustador. como um boto de águas profundo escuras ou um golfinho de parque aquático, pulou para o molhado e pôs-se a nadar. tão logo voltou à terra, compôs uma canção. 
pela primeira vez sem dor nem dó menor. 

purpurina

escreve poemas enquanto caminha. quando pára, desenha uma dancinha. dá para ver o fogo que brilha. dá para sentir o cheiro da resina. mas se tocar vira purpurina.

ela

Ela não aguardará que ele levante. Ela baterá a porta antes. Lá fora tem o mar e delícias salgadas. Diversas entradas levam à estrada. 
Ela gosta de desvendar caminhos. E tem claustrofobia. 

envelheceste

Envelheceste. Na última vez que te vi não eras assim. Teus cabelos embranqueceram. Tua retina parece turva.  Tua respiração é curta. Teus pensamentos rumam ao porto moralizador. Teu costumes sentaram na poltrona da dor. Tu roncas bem mais do que antes.

Eu vou embora de ti.  



terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

unhas

Com a boca cheia de unhas, contempla o sangue que escorre pelos dedos. Ela adora vermelho - indício de vida e morte. Vício.

No edifício tem muito ruído, e isto a desconcentra um pouco. Mas era pior no início. Com um breve sacrifício, hoje ela ignora o que a princípio parecia impossível. 

Cuspidas as unhas, caídas em silenciosas nuvens pela janela, agora ela lava as mãos - manchando da cor favorita a pia que antes era cinza.  

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

a cura

Dia desses algo muito estranho me ocorreu. Foi tão estranho que até agora não desapareceu. Continua ocorrendo. Não há como explicar o que é porque nem eu sei. Só sei que foi com eles, esses que se chamam eu.  

Acordamos disciplinados feito gado, enfrentamos o sol, não reclamamos do ônibus lotado. Passamos o dia todo sem enfado e nossa rabugice desfaleceu. Percebemos que algo havia mudado, que de fato o estranho nos acometeu. 
Em plenário concluimos que estamos curados, mas os pormenores a gente 
não entendeu.

pra ti

se eu tivesse como, escreveria um texto pra ti. ele seria denso e belo, longo e forte - como o tanto que senti. ocorre que nada me ocorre e preciso seguir. se eu parar agora serei ultrapassada pelo que já deixei. foi trabalhoso chegar até aqui, e o que tenho hoje é só o devir. nada mais. fim. 

é tudo invenção

é tudo invenção. o irreal não escapa. fantasias de vida, mentirinhas aumentadas, universo simulado; bolo decorado, massa fermentada, sabor flavorizado. quem escreve e cozinha nem sempre sou eu, mesmo quando pretendo e quando sozinha. "deixa vir" penso, e acontece. o outro aparece e tudo segue (des)sendo aquele. não mais eu e faz-se a coisa. bem assim... imagina!    

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

só liguei para manter a chama acesa. não há nada a ser dito. salvo que não gosto de ficar no escuro. porque sinto frio.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Rebeca

Rebeca sempre sonhou com um homem do tipo que ainda manda flores.
Eis que Deus lhe enviou um presente chamado Ronaldo. 

Ronaldo cresceu sabendo dos desejos da mãe. 
Eis que ele mandou flores para Nora.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

carpinejar

De ler Carpinejar, acordei com dezenas de certezas. E centenas de dúvidas. (Carpinejarei até chegar aos milhares).

o que for

eu digo que a porta está parcialmente aberta. há um mecanismo de disparo que bate a porta quando eu quero. mas como não há o que não haja, seja lá como, quando e o que for, eu digo que a porta está parcialmente aberta. (inclusive algumas janelas). 

da metafísica do amor

da metafísica do amor, nada me interessa. só me importam teus atos, tuas palavras, teus gestos. eu sou meu mundo e não existe o resto. ontem esqueceste tua chave sobre a minha cama. ouvi que tu me amas. sou uma pessoa contente. o mundo tornou-se belo e justo. o amor instalou-se entre a gente.

não é um cachimbo

"Se as palavras forem usadas, e elas procederem de idéias sobre a arte, então elas são arte e não literatura; os números não são matemática". [Sol LeWitt, Sentenças sobre Arte Conceitual, nº 16].


Do frescor do amor, eu tenho amor. Do peso da dor, eu tenho dor. 

Das palavras ao vento, eu tenho o vento.  

o sentido é para os fracos

Forte é aquele segue pela simples razão de seguir. Nenhum sentido pode ser tão relevante a ponto de mover um ato descontente. Em suma: nenhum sentido move o ato genuíno - ação do fato. Pois, no final das contas, nada explica ou compreende. Nosso devir é o seguir em frente. (O resto é talvez).  

O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas. Wittgenstein.

 O significado é o uso. Wittgenstein.

aquilo que bóia

teóricos elocubram um discurso coerente para explicar o leitmotiv do processo criativo do artista. e vão até o fundo. ficam tão longe da superfície que ignoram a sutil permanência daquilo que bóia: o artista faz arte por prazer - o artista faz arte por fazer.

só chove, só chove

só chove, só chove. fez-se um lago lodoso no jardim de mato. as plantinhas, que a princípio festejaram a iniciativa de são pedro, agora rezam pelo fechamento da torneira-mor. algumas estão encharcadas; outras, bem tortas. feias. viveram a dor da enchente velando a poesia das almas mortas. mas o tempo transforma. e não há beleza maior que esta.

Dr. Rivotril

Me prometeste sossêgo e me juraste paz. E eis que me trouxeste meramente o sono dos bobos: sem sonho nem descanso. Por isso eu decreto a dissolução absoluta do nosso vínculo. Se for para dormir que haja muitos REMs. Não sou do tipo que perde tempo - e nem do tipo que diz "amém". Eu mudo, eu troco, eu invento. Sempre me virei sozinho. Meu destino é o meu caminho.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

palavras de Holga VIII

"Na escrita, o que abunda prejudica".
(Holga Lo-fi)

Mr. Singular

Veste sunga vermelha desbotada. Enfia o cigarro de filtro amarelo dentro da sunga. Cantarola um tango e me chama de espanhola. Seu sonho é me levar para o Uruguai. Diz que lá as águas são mais quentes, e que lá falam a minha língua. Eu não duvido e não nego. Com ele tudo é extraordinariamente ímpar. Até o brega desvanece. É crepúsculo quando anoitece. 

goiabada cascão

eu estava sentada à mesa pensando em trabalho e dinheiro. uma vez que meu pensamento voou e me vi dentro da casinha de pano dando mamadeira para Julia, a boneca careca. quando dei por mim, fui adoçada como há tempos não. era goiabada cascão.   

formigas

as desgranidas carregam a ração dos cachorros para a toca, à noite. de manhã eu vejo. fazem uma espécie de tampa no buraco da habitação. e lá vou eu: boto a "tampa" no lixo e veneno no tal buraco. no outro dia, tudo igualzinho - o mesmíssimo ritual. fico indignada. destesto portas fechadas.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

domingo, 5 de fevereiro de 2012

certeza caduca

Ele não sabe mais se a palavra é sua ou do outro. Não sabe quem inventou a poesia. A avalanche vem e não discrimina. Intala-se sobre a rima e desenha uma outra coisinha. Ele não sabe de mais nada, não tem mais qualquer teoria. 

Ele só atende ao gozo do novo e esquece de quem copia. 

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

palavras de Holga VII

"Ainda hoje, após meio século escrevendo, não sei o que mais me move neste ofício - se o prazer da escrita ou o gosto de iludir. Assim como Perec, assumo publicamente esse gosto. E repito: nenhum escritor é tão bonzinho a ponto de não ser um zombador".
(Holga Lo-fi)

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

a música e o resto

"te quero de mil modos", cantou Drexler - e ela repetiu com o coração preso. paixão nunca foi um sentimento bem-vindo em sua vida. porque ela é neuroticanalisada demais. porque seu pensamento é sistêmico-marxista e sua filosofia, existencial-racionalista. porque seu movimento artístico preferido é o realismo-hipercontemporâneo. porque seu pulmão é preguiçoso. porque eros lhe parece um deus sôfrego e buliçoso. mas sobretudo porque preza a paz acima de qualquer otimismo-idílico. 

(oito segundos depois:)

eis que "me fazes bem", cantou Drexler - e eis que ela repetiu com o coração liberto. amor rima com transpor, ponderou. foi assim que ela aceitou a música e o resto.




[Jorge Drexler, Me haces bien]