terça-feira, 29 de março de 2011

sol

o sol finalmente se abriu, nos deu o ar e a sua graça. estamos mais animados agora. os passarinhos estão em festa e as plantinhas, saindo do mergulho de três dias. estamos todos celebrando o novo matiz. tudo está mais amarelo e feliz.







gripe

"Uma gripe nunca é apenas uma gripe quando chove", segundo a filósofa. Ela está de molho em casa, com uma febre de 38 graus e irritada com barulho da chuva batendo no telhado do vizinho. Ela está deitada, tapada até as orelhas, e ansiosa por estar de cama num dia útil. Estranho. Diferente. Estar chovendo sempre lhe confortou, porque o dia fica menos útil e as pessoas mais tolerantes. Mas hoje não. O barulho da água batendo no sólido produz um eco estridente, ligeiro e insistente. Insuportável.

Para sossegar tal ânsia acústica, saiu de casa e foi trabalhar.  

Não fez nada que preste. E ninguém reclamou.

segunda-feira, 28 de março de 2011

aqui chove

aqui chove demais. aqui só chove. está tudo molhado ou úmido. não faz calor. nem frio. faz um dia cinza e preguiçoso. é segunda-feira, infelizmente. aqui chove demais. aqui só chove. estou muito devagar ou lenta. não estou triste. nem alegre. estou desanimada e inconformada. é segunda-feira, infelizmente.    

avisos [Ella]

Ella foi escalada para um trabalho em São Paulo que levaria uma semana inteira. Recebeu o aviso com ânimo e alegria, mas logo avisou Benvindo, naquele tonzinho firme e autoritário que lhe é característico: "O Bê e o Bó comem duas vezes por dia, tu sabes. Observa as areias e troca quando estiverem sujas. Molha as plantas todos os dias, faz muito calor. E é importante conversar com elas". 

Benvindo: "Conversar?"

Ella: "Sim, elas gostam."

Deu-se a viagem e Benvindo tornou-se o único responsável pelas onze criaturas: os dois gatos e as nove plantas.    

De volta ao apartamento de esquadrias cor de abóbora, Ella percebeu que os gatos estavam mais gordos e as plantas, mais fortes e vivas. Então logo perguntou ao marido: "Conversaste com as plantinhas?"

Benvindo: "Sim".

Ella: "E o que disseste para elas, meu amor?"

Benvindo: "Eu avisei: Mamãe teve que viajar. Vocês precisam ficar bem bonitas, senão mamãe vai brigar com o papai".

E deu-se o longo beijo.    

coisa certa

Façamos a coisa certa: deixemos as portas abertas. E as janelas também.

Pode ser hoje o dia.

sexta-feira, 25 de março de 2011

quinta-feira, 24 de março de 2011

o palacete e a vila (inço da cidade)

ontem foi trabalhar no prédio da Justiça Federal, um palacete de granito que fica ao lado da Vila dos Papeleiros, em Porto Alegre. mas, subindo a enorme escadaria de pedras nobres, percebeu que a estética que mais lhe cabia era a dos barracos da vila ao lado - casinhas de diversos materiais, uma  gama variada de cores e texturas. e por isso mudou o trajeto: entrou na viela principal e aventurou-se naquele universo. mas sim, em que pese a peculiar beleza, aquilo era miséria. ao lado do prédio da Justiça, do extraordinário palacete de granito, mora a miséria, feita de papelão e restos. conversou então com duas ricas mulheres dali e teve vontade de ficar por mais tempo - antes que dali arranquem aquela vila daninha, aquela colagem que grudou nos seus pés e pupilas. 

fronhas

ela me contou que todas as suas fronhas são manchadas. que não desiste de levá-las à lavanderia na esperança de revê-las alvas. que realmente gostaria de apagar tudo aquilo.


e me contou também que não usa rímel à prova d'água. porque é alérgica.

palavras bonitas

lilás, maçã, cristal, dança, lâmpada, boneca, abelha, mãe, amor, amigo, primavera, maravilha, pássaro, formiga.

só palavras bonitas.

bailarima

dança e cresce
baila e tece um chão de rima
onde se lança bailarina

um post-página para Beti Foguete

aqui: uma compilação de escritos feitos para beti flor amarela. para que não se percam. mas aqui não há ficção nem criação propositada. são scraps do orkut em momento de não sei. recolho esses escritos como quem pega uma pá de areia e deposita os míseros grãos num canteiro de pracinha, abaixo do escorregador - onde eu mesma possa me jogar quando tiver vontade. não uso as pastas amarelas do explorer para guardar esse tipo de coisa - punhados de palavras-recado.



belíssima flor amarela:

dor agridoce
beleza maior
te amo e não penso na perda
teu ganho é o que há de melhor

se ontem foste bela
amanhã serás flor,
amarela


 yellowflower, veja o versinho do nosso adorado leminski:
"AMAR É UM ELO
ENTRE O
AZUL
E O AMARELO"
logo: mim azul, tu amarelo.


beti star dançando
beti star bailando
beti está
estrela


a saudade me engole, me devolve e me engole de novo. nesses dias de chuva ela está faminta, nesses dias de inverno ela está gulosa, nesses dias de arte ela está insaciável...
(engole, mas me devolve maior).

Marie é menina que baila & ri: bailarina!


és flor amarela
és bela
és beti estar
estrela

a gente é o que a gente sente já que a sensação é o presente - o resto é talvez. 
ai guapita, quanta lamera!


As lágrimas que brotam fertilizam a estrada torta.

aos cães que já partiram

o som do seu latido ficará em nossos ouvidos,
o seu olhar-falante ficará em nossas retinas,
a textura de seus pêlos ficará em nossas patas
e o seu cheiro singular, em nossos narizes.




[para Mi, Brega, Xuxa, Lola e Susana].


gente que faz

são aqueles que pintam encerrados em apatamentos-ateliês minúsculos, deixando secar as caixasdepizza-telas sobre mesas e sofás, renunciando ao conforto desses espaços;

 são os que vão trabalhar antes do sol nascer, ou quando o sol se põe;

são as pessoas que adotam animais de rua e dedicam seu tempo a essas criaturas desconhecidas de que estão dispostos a cuidar;

são os que fazem churrasco aos domingos e não se importam de limpar a sujeira;

são os amigos que telefonam para seus amigos apenas para saber como estão;

são os que vão em pé no ônibus lotado sem perder o bom-humor e a disposição;

são os famintos que têm paciência para descascar moranga antes de cozinhá-la em fogo brando;

são os que saem para dançar em dia de semana;

são os alunos que não chegam atrasados à aula quando chove;

são os que educam filhos com esmero e doçura;

são muitos. 

quarta-feira, 23 de março de 2011

O bloco de Benvindo - parte II [Ella]

Ella descobriu que Benvindo tinha planos de abandonar o emprego para virar artesão e escritor. Isso aconteceu quando ela leu o bloquinho de escritos do marido, um apanhado de folhas encardidas e amassadas que ele carrega por onde quer que vá. Os garranchos etílicos diziam: "é chegada a hora de executar os planos, largar essa merda de emprego e viver da mão e da caneta. tenho um gordo FGTS, e em abril ele estará 'obeso' (como diria Ella)".

Ella ousou ler o tal bloquinho porque admira o talento literário de Benvindo, a sinceridade e a fluidez de seus textos, e não para bisbilhotar a sua vida. Sim, dessa vez isso foi verdade. E eis que deu-se a bisbilhotação. 

Mas diante da revelação ela se conteve. Repirou fundo e aprisionou a informação por uma semana. Procupada e com as idéias borbulhando, Ella passou  uma semana tensa. Uma semana tensa e longa. Até que no sábado, após o almoço (frango assado com batatas), entre a lavagem de louças e a digestão, ela abriu seu coração e largou essa: "se deixares o emprego comeremos só batatas". Benvindo tomou a declaração como um tiro, largou o pano de prato em cima do ombro - o que Ella odeia - e anunciou: "não tens o direito de ler meu bloco. isso é jogo baixo! não é um diário, mas é onde exponho minha intimidade. depois de velha virou bisbilhoteira?"

Ella respondeu com toda a ironia e charme que lhe são característicos: "é que sou jovem por tanto tempo que passei da fase de ser feliz sem dinheiro". Com isso, Benvindo pegou o pano de prato, enlaçou o pescoço d'Ella, beijou sua boca com força e disse: "tu estás mais jovem do que quando te conheci. teus olhos têm mais brilho".


E, que eu saiba, não se falou mais em bloco ou desemprego.

terça-feira, 22 de março de 2011

oração a Lakshmi

deusa amiga,
me olhe e me veja,
ilumine meu caminho,
me ajude a ter foco. 
serás surpreendida.
peço a ti,
detentora do poder transformador da fértil prosperidade,
a tua ajuda
para comprar uma câmera fotográfica.

eu mereço ouvidos
porque tenho sido uma boa pessoa,
um ser-humano moderado, pacífico e reverente,
uma boa alma mesmo.

namastê.
   

o devir

a vingança da escória

sim, isto é arte.

segunda-feira, 21 de março de 2011

confissão :-)

estou cheia de cabelos brancos. não aguento usar salto alto por um dia inteiro. não bebo mais destilados. minha ressaca de vinho chega a durar dois dias. fico quebrada depois de uma faxina. hoje tonteio quando subo na caixa d'água, e prefiro sair pra jantar a uma noite na balada. invisto mais em livros e cosméticos do que em roupas e sapatos. tenho menos pêlos nas pernas, e mais em lugares atípicos. a lactose não tem me feito bem. tenho visto qualidades inimagináveis nos meus pais. já não encrenco com as saídas noturnas do meu amor. ando ouvindo mais a Itapema do que a Ipanema. e sofro de juventude. 

[como Tom Zé].

ciranda

não quero mais brincar assim. vamos abrir a roda, enlarguecer - incluir os avulsos, reunir os desgarrados, descobrir os esquecidos, acolher os solitários. vamos crescer.

sábado, 19 de março de 2011

nota de Charles Kiefer

Acho importante colocar TAMBÉM aqui essas palavras do Kiefer.

=> um trecho de suas "Três notas sobre os blogs" - nota 1 na ítegra em http://apalavradosoutros.blogspot.com

[...] A um olhar rápido, e que não penetra a matéria observada, os blogs não passam de "trenzinhos elétricos de diversão do ego", em que adolescentes desorientados estariam fazendo mera catarse, como têm dito aqueles que condenam, geralmente sem querer conhecer, essa nova forma de expressão.

[...]

É bom que o ego passeie pelos blogs, e que se expanda, e que se desnude, especialmente nesta fase fundadora, de pura ex-pressão, quando o que é quer vir para fora, embora saia apertado e de baixo de vaias. De tanto mostrar-se, a expressão, no choque permanente contra o leito do rio da experiência, arredondará as suas formas, polirá as suas arestas e se transformará em arte. [...] Então, o olhar apressado há de deter-se sobre o novo objeto e será capaz de ad-mirá-lo

Em sua protoforma, os blogs "parecem" ser a escória de uma civilização voyeurística, o destilado mais recente da tecnificação absoluta. No entanto, como à natureza apavora o absoluto e as afirmações categóricas, ela própria se encarregará de se vingar, transformando, ainda uma vez, o periférico e marginal em central e integrado, de tal forma que os blogs poderão vir a ser a mais autêntica forma de expressão artística do século XXI.

KIEFER, Charles. para ser escritor. SP: Leya, 2010.

dicionários

Adoro dicionários, mas às vezes discordo deles. 

Vou contar um "causo" real:  

Era 2010 e eu participaria de uma mostra de arte no espaço da Livraria Cultura. Fiz um trabalho especialmente para isso. As "regras" da exposição eram: temática: dia dos namorados; formato: A2, para pendurar na parede. Meu trabalho consisitiu em dois sanduiches de vidro, cada um trazendo uma definição de dicionário. O primeiro da palavra amor, ano de 1974. O segundo da palavra paixão, ano 2010. Em molduras prateada e dourada, respectivamente. Mas enfim, o ponto é:

Fiquei muito surpresa ao descobrir que, no ano de 1974, amor era definido como "Inclinação sexual forte por pessoa doutro sexo". Doutro sexo? Fiquei ainda mais surpresa quando descobri que em 2010 essa definição continuava a mesma, e certamente agora em 2011, idem. No mínimo curioso.

Partindo daí, passei a "corrigir" os verbetes de dicionário.

Comecei o tal projétil-exercício, o "dicionário project", que está em lento e contínuo andamento.  Enfim. Outra hora escrevo sobre. Por ora fica  a ilustração do trabalho.




paixão s.f., amor s.m.
2010



"Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem" - a meu ver só isso bastaria para definir amor (no "quesito substantivo", é claro). 

feminino

fe.mi.ni.no adj. 1. Relativo ao sexo caracterizado pelo ovário, nos animais e nas plantas. 2. Feminil. 3. Gram. Diz-se do gênero de palavras que, pela terminação e concordância, designam seres femininos, ou que são considerados como tal. sm. 4. O gênero feminino.  

[Aurelinho, 2008]


Ou:

fe.mi.ni.no adj. 1. Relativo ao sexo caracterizado pela motivação do yin, nos animais e nas plantas. 2. Estado de energia, pensamento e sentimento próprios da mulher ou do homem. 3. Gram. Diz-se do gênero de palavras que, pela convenção, designam seres femininos, ou que são considerados como tal. sm. 4. O gênero feminino.  


[Carlinha, 2011]

Lori

"Mesmo quando não há nada a dizer, sempre há alguma coisa a se pensar". Essa é a filosofia de Lori, minha personagem mais neurótica, mais falante, mais revoltada e mais inteligente.

Ela ainda não apareceu aqui. Por enquanto está só pensando.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Orácio

Orácio esperou tanto tempo por isso, e agora que aconteceu ele foi tomado por um imenso vazio. Antes havia a expectativa de dias melhores, e agora esses dias melhores parecem tão ocos... Dá até para ouvir o eco dos seus sonhos.

motivo oculto

Laura anda muito calma. Deixou de roer unhas, está quase parando de fumar e não pensa mais em se separar. Um belo dia acordou assim, uma lagoa mansa de águas turvas (o estranho é que chovia). Laura não entende o motivo da própria serenidade, só que não tem tempo para pensar no assunto. Daqui vinte minutos ela deve estar batendo o ponto no novo emprego.

pós-vestibular

O guri passava a tarde estudando. Pela manhã, dormia. À noite assistia a filmes ou vídeos que contivessem alguma coisa relacionada à prova - filmes de época, documentários, noticiários. História, biologia e geografia em movimento. Deu tudo certo.

Agora reina a obrigação de acordar cedo e seu futuro está recém começando.

Ontem ele assistiu Avatar pela terceira vez e hoje não acordou para ir à aula. 

quinta-feira, 17 de março de 2011

textos mutantes

isso aqui é processo. cada vez que leio alguma coisa, eu mudo. troco. edito. mexo.


enfim.


isto aqui é mutável.

os textos são mutantes.

quarta-feira, 16 de março de 2011

forasteiro

Chegou naquela cidade como quem entra no mar. O coração acelerou, os olhos cegaram. Pisou com cuidado. Só mergulhou quando voltou a enxergar.

Seu peito acolheu o lugar, aí soube que ficaria por lá.

tungados em dezembro

prometeram uma grande liquidação, mas o desconto era de 10%, e apenas para as peças de inverno. ao estacionar o carro na rua, pagamos o parquímetro e demos um troco para o guardador, que não estava lá quando voltamos. pedimos um suco natural na lanchonete da moda, e ele veio diluído em água. compramos uma passagem aérea para ir a São Paulo ver a Bienal, e quando chegamos na cidade a mostra já tinha terminado. pagamos as contas de água em dia, e água tem vindo amarela. a conta de luz, idem, e a luz sempre cai nos finais de tarde. o IPTU nós nunca atrasamos, e a rua alaga quando chove, invadindo o canteiro central que mais parece uma floresta. investimos num pacote turístico muito caro, e dormimos no beliche de um quarto de fundos sem frigobar. adquirimos um rolo de papel higiênico colorido, e ele tem menos de 40 metros. almoçamos um cachorro quente completo que veio com meia salsicha, e ainda nos deram duas balas de troco.

indagação

Por que sorrir tão sério, chorar tão baixo, amar tão manso e odiar tão fraco?

Por que correr da vida escondendo os rastros? 

terça-feira, 15 de março de 2011

declaração

tão fofo que dói. mas faz sorrir. esse bichinho de olhos vesgos, bigodes falhos e unhas bicolor. um ser assimétrico, peculiar na estranheza. quem não gosta de animais não entende... tanto afeto depositado numa nuvem de pêlos.

criaturagens

Quantas pessoas-amigas existem nas personagens inventadas? Quantos eus-escritores existem nessas criaturas? Quantas delas andam nas ruas? E quantas não passam de um nada?

louca para partir

Acho que vou partir. O movimento me chama e a velocidade me encanta.

Ontem fui a uma festa e ninguém dançou. Passei a noite bebendo e balançando o pé. Quando ameacei dançar, pediram para trocar a música. Não imaginam a bailarina que mora em mim. Nem a louca.

E ela vai partir. Movendo ares. Rapidamente. Simplesmente. Vai.

Mas quando perceberem, ela já voltou. O tempo dessa louca é outro. Estará balançando pé, com uma taça de vinho tinto na mão, exigindo que deixem a música tocar até o fim. Quem sabe já estará dançando... sozinha. Sim, ela será aquela.

equalização

saturação para os sóbrios,
nitidez para os confusos,
contraste para os discretos,
brilho para os tristes,
luz para todos.

Clóvis

Ninguém entendeu exatamente porque, nem como, nem onde. Mas Janice apareceu casada. Sim, surgiu num encontro entre amigos contando a proeza: certa manhã acordou ao lado do homem que dizia ser seu marido. Ele era moreno, alto, bonito e muito sensual. Não era rico, mas também não era pobre. Vivia do esporte, era um atleta profissional. Jogador de vôlei. Nada mais sexy.

Janice não entendeu o ocorrido. Jamais havia visto aquele cara, jamais havia estado naquela casa. Não lembrava de nada, mas estava pelada. E alegre.

Então Clóvis (esse era o nome dele) contou tudo: noite passada ela estivera num bar chamado "O Bonde". Quando tocou Macarena ela tirou Clóvis para dançar. A sintonia foi tamanha que passaram a noite dançando. Depois se beijaram e fizeram planos. Descobriram que tinham o mesmo signo e que foram colegas no jardim de infância. Bastou. Dalí foram para a calçada esperar o dia amanhecer, enquanto as pessoas iam trabalhar. Quando bateu oito horas estavam no cartório, e oficializaram a união.

Foi assim.   

memória bic

Se não escrever, esquece. Por isso espalha bilhetinhos pela casa, papéizinhos em branco próximos a canetas. Certo dia, lhe perguntaram seu CEP e ela não lembrou. Outro dia, o CPF, e ela esqueceu. Ontem, o telefone da vizinha, e ela não fez idéia. Hoje, a data do aniversário da dentista, e ela não soube dizer. 

Sua memória é feita de tinta de caneta. bic. Vermelha. 

beterraba gesso barro

tem gente que não gosta de ralar beterraba, eu gosto. é prazeroso ter as mãos manchadas de roxo. magenta arroxeado. poderia ser sangue. lavo as mãos me sentindo Lady Mcbeth, e depois dou risada.

melhor que isso é meter a mão no gesso quando está ficando quente e duro. vontade de comer aquele aquele marshmallow. mas o melhor de tudo é botar a mão na argila, quando ainda está molhada.

esse troço

esse troço que controla as visualizações da página mente. é falso, um engodo decorativo. só está ali para lembrar que a página pode ser vista, que você espalhou pelos quatro cantos de sua vida o endereço. é impossível que entre às sete e às oito horas da manhã seis pessoas tenham passado por aqui. meus amigos não acordam tão cedo.  

terça

porque hoje é terça eu não esmoreço. vou fundo na semana. muito pode ser feito. por ora, mais um café.

domingão de sol

Sonhei que hoje sou mais feliz que ontem. Acordei cantando um samba.

Desci a ladeira sorrindo. Encontrei meus amigos. Bebemos três pingas cada um.

Subi a ladeira dançando.

verbalizar

acordar. comer. fumar. ligar. ouvir. cantarolar. telefonar. oferecer. combinar. imaginar. lavar. estender. costurar. guardar. organizar. procurar. encontrar. agradecer. falar. dizer. rir. animar. decidir. caminhar. cumprimentar. correr. beber. voltar. varrer. limpar. reclamar. enraivecer. conversar. confessar. apaziguar. beijar. trepar. adormecer. acordar.

abrir a torneirinha do verbo. escrever.

calma para escrever

o texto nasce da ansiedade, da neurose e do desapego. nada contraditório. nesse caso, são complementares. mas é preciso calma na hora de teclar. não colocar a carroça na frente dos bois é importante. primeiro o ânimo, depois o gesto, depois o penso. o pensamento vem quase por último. não dá para pensar antes do gesto. no mínimo, o pensamento vem junto. pelo menos para mim. 

bom mesmo é não pensar

está ficando tarde e recém comecei esse texto. gostaria que hoje fosse sábado. preciso dar banho nos cachorros e marcar hora com a dentista. se eu descobrir a solução daquele caso posso terminar aquele processo de uma vez por todas. me livro de mais um numerozinho. ainda não respondi o email do Dr. Eloi. tenho que parar de fumar esse ano. devo comer mais frutas. e se meu tio estiver gravemente doente? como confortarei minha mãe? as doações para o centro espírita ainda estão no porta-malas do carro. fiquei de telefonar para Dídi. saudade dela. quem sabe nesse final de semana consigo visitar minha avó. ela está velha. não posso esquecer de pegar os ingressos para a peça do Caio. ainda não entendi quem fez a cenografia. vou devolver o livro da biblioteca quinta-feira depois da aula. me disseram que a Livraria Cultura está em liquidação. quanto será que tenho no banco? é importante depositar algum dinheiro na poupança, faz tempo que não faço isso. acho que vou aceitar a doação da estante. minha casa está um atrolho. queria morar num lugar amplo e vazio. até o final do ano eu pinto a parede de branco. que horas são?   

hoje cedo

hoje acordei bem cedo para ter tempo de ficar em casa. ultimamente não tenho tido tempo para isso. antes de me sentar aqui, lavei a louça e recolhi as roupas do varal. varri a varanda. molhei as plantas. tirei o lixo orgânico e organizei o lixo seco. cortei as unhas. gosto de ficar em casa.

sempre achei estranho quando as pessoas diziam que não tinham tempo para si e para as lides do lar. hoje eu entendo. 

daqui a pouco irei embora daqui. sairei para trabalhar, ir ao banco, namorar, estudar e escrever pensamentos esparsos em bloquinhos mínimos que levo para a aula noturna. gosto de partir.

sempre achei estranho quando as pessoas diziam que passavam o dia na rua e que, se pudessem, pegariam um trem para o Japão. hoje eu entendo.    

segunda-feira, 14 de março de 2011

dono-de-casa para namorar

"Procura-se dono-de-casa para namorar". Foi isso que Fabrícia anunciou nos classificados do jornal de domingo. Porque cansou de lavar a louça sozinha, de levar o lixo pesado para a rua, de comer comida de microondas, de usar a mesma toalha por duas semanas. Enfim. Cansou de ouvir o eco de seus passos dentro daquele apartamento imundo e escuro.

Choveram telefonemas, mas até agora nenhum pretendente sabe usar o aspirador de pó ou se dispõe a trocar lâmpadas.

pressa

na cara da pressa o tempo é curto sim.

porque, presa nisso, ela sempre perde o fim.


ainda resta um farelo de hora, mas é tarde para o agora.

então esse pedaço seca.

e vai embora.

sábado, 12 de março de 2011

oito dicas

Oito dicas para escrever um texto f l u i d o l i v r e s o l t o :

1) não elabore, aceite as frases como elas vêm;
2) não equacione, esqueça os pesos;
3) não use o dicionário, arrisque;
4) use os ouvidos, sinta;
5) escreva;
6) escreva;
7) escreva;
8) escreva.

Assim.

a voz da repórter

A voz da repórter irrita, provoca desarmonia no recinto.
Seu som anuncia tragédias. A matéria vibra estranha.

A voz da repórter finca, fere e desalinha.
Seu som amplia catástrofes. A energia alucina.

A culpa é toda dela, não minha.

La niña [Ella]

Se Ella pudesse fazer alguma coisa, ela faria. Descolaria um aspirador gigante para sugar as águas. Reconstruiria as casas, as ruas e as praças. Daria colo aos desesperados. Proporcionaria o reencontro dos perdidos. Reestruturaria famílias. Remodelaria o morro, emprestando seu barro mais precioso. Esculpiria encostas sem bananeiras. 

Mas nada disso é possível.

Por isso Ella doa roupas, alimentos, guarda-chuvas e outros troços. E deseja adotar os órfãos.

 (Mãe Ella pensa que é deusa). 

por ontem

hoje por ontem
o oriente chora
mais uma onda

não mais

Não assistirei mais tv, não lerei mais jornal e, no rádio, só música.

Viverei na ignorância serena das águas rasas.

Tsunamis e chuvaradas, só nas minhas mágoas.

tsunami

tsunami em mim
aquela gente toda
sofrendo assim

sexta-feira, 11 de março de 2011

dó de deletar

tenho dó de deletar letras
fico pensando onde ela vão parar

mantenho a escrita torta para deixá-las vivas

uma letra apagada é uma letra morta

ser artista [para lembrar]

o texto anterior (ser escritor) me traz de volta a idéia do artista enquanto artista,
enquanto criador, arranjador, elaborador, produtor,
enquanto atua,
enquanto durar o gesto.

nem que seja por quinze minutos.



[a idéia do artista enquanto artista foi trabalhada no texto a arte de qualquer um - meu, aqui, em 11/2/2011].

ser escritor

só se é escritor enquanto se escreve
palavras aparecem
cabeça sequer acompanha
o texto se tece

quando num tropeço, num freio ou interferência, o escritor se depara com essa malha, essa trama de fios nômades com todas as suas falhas, e pára de escrever interrompendo o gesto, ele torna-se autor - aquele que racionaliza, projeta, equaciona.


é impossível ser escritor por muito tempo,
talvez por isso o fluxo de consciência seja tão prazeroso.



o que é bom dura menos do que gostaríamos, 
mas dura pelo tempo exato em que permanece bom.

senão é autoria.



[referência: texto Ser escritor, de Charles Kiefer].

tese 02

[tese:]

A modalidade do visível também está na palavra.


[fundamentação:]

cOrpO EU gOstO

BELezA eXtraOrdináRia
prOpOrção peCULiAR

ÚNicA

[conclusão:]

veJo a pAlAvrA
LeIo a imAgEm

quarta-feira, 9 de março de 2011

chega

chega de tentar dissimular, disfarçar e esconder o que não dá mais para ocultar: você está triste e a causa dessa tristeza não fui eu quem criou. foi você. eu apenas não lhe quero mais e você insiste em querer só a mim.

manhã passada você não me beijou, e eu preferi assim.

admito

saudade de ficar em casa num dia nublado, ventoso, instável.

novidade: abandonei o guarda-chuva e os chinelos num dia que não é sábado.

virou haicai

por poesia
digo o que não devo
invento termos

pão quente

hoje tem pão quente na casa da minha amiga. ela fez para me receber. ainda não botou no forno porque a massa está crescendo. em seguida vai chover.

em cima do sofá da sala, dorme um gato cinza. no tapete da cozinha, um cão amarelo espera por um abraço; e uma cadela preta, por um pedaço.

na casa dessa minha amiga todo mundo é feliz, até a formiga.



[referência ao haicai de Leminski: jardim de minha amiga/todo mundo  feliz/até a formiga].

um zero zero um

acordou sem frio nem sede, lavou o rosto com sabão neutro, pintou a boca de vermelho. serviu o café numa caneca de alumínio e sentou-se na varanda. abriu o jornal mas desisitu de ler. molhou a samabaia. xingou as formigas. pensou naqueles que ainda dormiam e concluiu que quarta-feira de cinzas é um dia azulado.

centésima postagem

tem que vir alguma. algo tem que aparecer. não deletarei essas pobres palavras. preciso delas, ora.

se apagá-las, nenhum indício de tentativa, nenuma letra por testemunha. mas:

preciso de quorum, preciso de elenco, preciso da forma. 

e a centésima postagem exige que seja agora. 

poetar

pela poesia eu nego a rima, recuso palavras bonitas e abandono idéias.

pela poesia, escrevo o que não devo. invento verbos.

piscina do vizinho

a piscina do vizinho é diferente da minha. as folhas bóiam na superfície e no fundo só tem limo. 

vejo tudo daqui.

na piscinha do vizinho bate sol o dia inteiro. a água é parada e nem o vento chega perto.

vejo tudo daqui.

minha piscina é um cordão amarelo pendurado à sombra, sob a brisa morna que revolve o jato.

um jato que afasta folhas e chama passarinhos.   

assim fizeste

disseste que não trabalharias, que deixarias tudo para outro dia e assim fizeste.

passaste o dia escrevendo, entre cafés e biscoitos, e não levaste o lixo pra rua. o telefone tocou e não atendeste. choveu e não fechaste as janelas. o sino bateu e não ouviste. os cães pediram água e não entendeste. o café ficou pronto e não desligaste a cafeteira.

teu outro dia será longo, porque assim o fizeste.

(na) morar contigo

gosto de morar contigo quando abres as cortinas, quando cuidas do jardim, quando lavas a louça, quando recolhes teus sapatos, quando fazes o almoço, quando alimentas os cachorros.

gosto de morar contigo quando brincas comigo, quando colocas a música que quero ouvir, quando compras o vinho que pedi, quando me abraças antes de dormir.

gosto de morar contigo quando pagas as contas, quando me beijas a boca.

gosto de namorar contigo quando me deixas louca.

quarta cinzenta

quantas pessoas hoje dormem se recuperando da folia?  quanta gente hoje trabalha de ressaca? quantos de nós hoje já sente saudade da alegria? e para quantos esse dia não diz nada?

segunda-feira, 7 de março de 2011

oração ao jardineiro I

jardineiro amigo,
apareça por favor.

peço a ti,
detentor do poder transformador da poda,
uma ajudinha pelamordedeus.


sei que mereço 
a benção de tuas mãos.
pois tenho sido uma boa pessoa,
um bom ser humano,
uma boa alma mesmo.

amém.
   

amor e processo

o processo criativo já é um pedaço, já é parte. seu conhecimento pode tornar o objeto artístico mais interessante. e normalmente torna.

sua fruição fica (é)  diferente, talvez mais próxima do amor do que da paixão. 

Barthes escrito

Sob o título "escritos de Barthes", publiquei no a palavra dos outros esse trechinho do texto de Roland Barthes em "o grau zero da escrita" (SP: Martins Fontes, 2004. p.63 e 65):


"A escrita artesanal, colocada no interior do patrimônio burguês, não perturba nenhuma ordem; privada de outros combates, o escritor possui uma paixão que basta para justificá-lo: a gestação da forma. 

(...)

Nesse mesmo esforço de desvencilhamento da linguagem literária, eis uma outra solução: criar uma escrita branca, libertada de toda servidão a uma ordem marcada pela linguagem".    




[Ao perceber que, também quando escrevo, a gestação da forma me deleita e que muitas vezes tento criar essa "escrita branca", livre da servidão à ordem da linguagem, resolvi citar Barthes também aqui no inços] (querido diário version, 004.2).  

... Este "lugar" virou uma plataforma para criação - além de depósito e veículo. 

domingo, 6 de março de 2011

sunday you need love (monday be alone)

Você a vê dançar no chão. Você a quer, deseja tê-la como antes. Você irá usá-la para saciar suas necessidades. Você fará promessas que nunca irá cumprir. 

Então você a deixará seguir seu próprio caminho.

Mulher everlovin, cuidado para não passar as fronteiras da luz mais uma vez esta noite!

Porque às vezes você a quer.

Domingo você precisa de amor.  E segunda, estar sozinho. 



[adaptação/edição de Sunday you need love. Trio]. 
http://www.youtube.com/watch?v=_Sp9uybENWo 

tese 01

[tese:]

A modalidade do visível também está na palavra.


[fundamentação:]

a palavra abacate é uma palavra verde;

a palavra melão é amarela-claro. 

a palavra domingo é uma palavra vermelha;

a palavra sexta-feira é azul-escuro.


[conclusão:]

a palavra loucurinha é uma palavra fuchsia,


e a palavra individual é preta.

sábado, 5 de março de 2011

outro final para "o convidado"

Ele veio para jantar. Sentou-se à mesa, no lugar que é o meu, e depositou seus dois telefones celular ao lado da taça de vinho. Tentei não protestar. Pedi que ele abrisse a garrafa, e ele abriu-a para dentro. A rolha ficou boiando no líquido vermelho-rubi. Tentei não reclamar.

Quando servi o peixe, ele avisou que era alérgico à pimenta. Hemorróidas, eu pensei. Ele comeu o peixe. Tentei não chorar. E servi a sobremesa.


[em vez de:
Quando servi o peixe, ele avisou que era alérgico à pimenta. Hemorróidas, eu pensei. Só arroz e salada, ele comeu. Tentei não rir.  E servi a sobremesa].

carnaval 2011

vestirei um abadá de idéias, encherei a cara de alegria, tomarei um engov de criatividade, calçarei as sandálias da imaginação e cairei na folia. sem desodorante.     

novamente sábado - parte II





[sim sim sim, o nome do teu dia preferido é "sábado"].   

dois cadernos

até aqui, dois cadernos. fora daqui, tem mais quatro.

todos de 2010. um de cada cor.

o primeiro é o verde. o segundo, o amarelo (mais maduro).



[possibilidade de inserção de imagens: ver os cadernos de outro jeito, guardá-los de outra forma]

[isto não é um depósito?]

[também]

[acima de tudo, talvez]

caderno verde



caderno amarelo


eleanor e o padre

Eleanor Rigby apanha o arroz de uma igreja, onde houve um casamento. Ela vive em um sonho e espera à janela, portando um rosto que  guarda num jarro perto da porta. Para quem é?

Padre McKenzie escreve o sermão que ninguém ouvirá. Ele remenda suas meias à noite, quando não há ninguém por perto. Com o que ele se preocupa?

Eleanor Rigby morreu na igreja e foi enterrada junto com seu nome, mas ninguém apareceu. Padre McKenzie limpa a sujeira das suas mãos enquanto se afasta do túmulo.

Todas as pessoas solitárias, de onde elas vêm? De onde elas são?


[adaptação/edição de Eleanor Rigby. The Beatles. Lennon & McCartney].

http://www.youtube.com/watch?v=3Dsz4dB6DuM

ela não fuma mais

ela não fuma mais. ela rói as unhas mas não fuma mais. ela bebe café o dia inteiro mas não fuma mais. ela não dorme direito mas não fuma mais. ela anda nervosa mas não fuma mais. ela voltou a beber mas não fuma mais. ela brigou com a família mas não fuma mais. ela está com bruxismo mas não fuma mais. ela está vendo coisas mas não fuma mais. ela escreve besteiras mas não fuma mais. ela vai viver muito mas não fuma mais.

sexta-feira, 4 de março de 2011

se sim

Vamos assistir a um filminho, sem preço nem fila, acompanhados só pelos travesseiros, aqui mesmo, no nosso minúsculo ninho? Se sim, divido contigo meu chocolate suiço e meu copo d'água gelada com bolinha.

ação cautelar

Fulano de Tal, mestiço, enamorado, residente e domiciliado em local pouco ermo, por sua procuradora blogatária, vem, perante Vossa Grandiloqüência, interpor a presente Ação Cautelar de Desebulição Carnavalesca contra todos os canais de televisão aberta e contra todos os vizinhos do autor, lindeiros e não lindeiros, que forem passar o feriado em Porto Alegre.   

eucarlinha

é véspera de carnaval e eu tentando trabalhar. mas minha cabeça não acordou jurídica.

ai!


cai a rãzinha
numa banheira cheia
e nada faceira


para mim, quarta-feira de cinzas é um dia amarelo.

texto chato

nas horas tortas ele escreve feito um louco, tarado, compulsivo. cria cenas extraídas de suas entranhas cerebrais inventativas. de tão ruim que às vezes o texto fica, ele suspeita que tais cenas venham de outras entranhas, não cerebrais ou não inventativas. mas enfim. ficar ruim o texto para ele não é problema. problema é quando o texto fica chato. nesse caso ele se desanima, desliga o computador e fica olhando as lagartixas que brincam de roda no teto da sala. se surge alguma nova idéia, ele diz que tem preguiça e que sempre quis ser biólogo.   

até hoje não sabemos se isso é mesmo verdade.  

quando enfrentou a criatura

incontáveis postagens possíveis naturalmente imprevisíveis para dizer tão-somente que não sabe exatamente o que veio fazer aqui. acaba com isto fazendo várias vezes isso que não sabe o que é. 


então tá - diz ela à criatura - pode vir, pode entrar e não precisa se apresentar. você é você e pronto. não me interessa mais o quê. acho que você só existe por causa disso. e também porque ninguém te lê.

alternativas

o quê:

1. processo da criação. 2. trajeto da construção. 3. desvios da experimentação.

onde:

1. aqui. 2. no caderno. 3. no diário. 4. na cabeça.

quando:

1. a coisa aparece. 2. a coisa quer.

como:

1. livremente. 2. levemente. 3. soltamente. 4. dispersamente. 5. cara-de-paumente. 6. simplesmente.

por que:

1. sim. 2. não. 3. talvez.

quinta-feira, 3 de março de 2011

o convidado

Ele veio para jantar. Sentou-se à mesa, no lugar que é o meu, e depositou seus dois telefones celular ao lado da taça de vinho. Tentei não protestar. Pedi que ele abrisse a garrafa, e ele abriu-a para dentro. A rolha ficou boiando no líquido vermelho-rubi. Tentei não reclamar.

Quando servi o peixe, ele avisou que era alérgico à pimenta. Hemorróidas, eu pensei. Só arroz e salada, ele comeu. Tentei não rir. E servi a sobremesa.

capela-jardim

meu oratório é o canteiro de Tulbaghia violacea que fica em frente à porta de entrada da casa. salpicado de inços, ele faz parte do mosaico que embeleza o piso da capela-jardim. o som dos carros e o canto dos pássaros são música, que eleva minha alma ao teto de nuvens.

mas um cheiro de merda envolve o lugar. como se as portas estivessem fechadas, como se os vitrais não estivessem quebrados. e minha oração termina em nojo, em asco, em riso. nenhuma reparação é possível. 

minha alma já atravessou as nuvens, estacionou no fundo do céu. 

e sentanda num azul infinito eu avisto um pontinho branco sobre um fundo verde: é meu cachorro cagando. aproveitou a minha ausência, o safado.

    

espelho nos olhos

ontem fui ao teatro e lembrei de mim. a platéia estava lotada e eu não estava no palco. o pontinho negro mais baixo que desenhava o horizonte-público era eu. a minha cabecinha sorria.

... um dia pisei naquelas tábuas, me escondi atrás das cortinas, chorei nas coxias.  no dia em que por medo perdi a voz, eu completava dezoito anos. era estréia.     

a minha cabecinha então subiu e, preenchendo uma lacuna, completou a linha que desenhava o horizonte-público. foi aí que me assisti muda, aplaudindo, pelos olhos do ator. 

fazia tempo que não me via. já não sabia que fui assim, igualzinha a mim.

explicação (aos preguiçosos de plantão)

porque nas horas vazias eu busco algo para preenchê-las. porque quando nada faço as coisas se fazem por si mesmas. porque é melhor deixá-las vir do que impedí-las de existir. porque não gosto de me arrepender. porque a possibilidade leva mais longe. porque a probabilidade vem daí. porque eu nunca saberia se não. porque depois disso eu saberei. porque pelo menos pensarei que sei. porque o pensar que sim pode ajudar a ser. porque descobrir requer supor. porque os desejos nascem silenciosos. porque a vontade às vezes duvida. porque tentar só faz crescer. porque o único dever é ser feliz. porque eu quero e porque sim.