quarta-feira, 23 de março de 2011

O bloco de Benvindo - parte II [Ella]

Ella descobriu que Benvindo tinha planos de abandonar o emprego para virar artesão e escritor. Isso aconteceu quando ela leu o bloquinho de escritos do marido, um apanhado de folhas encardidas e amassadas que ele carrega por onde quer que vá. Os garranchos etílicos diziam: "é chegada a hora de executar os planos, largar essa merda de emprego e viver da mão e da caneta. tenho um gordo FGTS, e em abril ele estará 'obeso' (como diria Ella)".

Ella ousou ler o tal bloquinho porque admira o talento literário de Benvindo, a sinceridade e a fluidez de seus textos, e não para bisbilhotar a sua vida. Sim, dessa vez isso foi verdade. E eis que deu-se a bisbilhotação. 

Mas diante da revelação ela se conteve. Repirou fundo e aprisionou a informação por uma semana. Procupada e com as idéias borbulhando, Ella passou  uma semana tensa. Uma semana tensa e longa. Até que no sábado, após o almoço (frango assado com batatas), entre a lavagem de louças e a digestão, ela abriu seu coração e largou essa: "se deixares o emprego comeremos só batatas". Benvindo tomou a declaração como um tiro, largou o pano de prato em cima do ombro - o que Ella odeia - e anunciou: "não tens o direito de ler meu bloco. isso é jogo baixo! não é um diário, mas é onde exponho minha intimidade. depois de velha virou bisbilhoteira?"

Ella respondeu com toda a ironia e charme que lhe são característicos: "é que sou jovem por tanto tempo que passei da fase de ser feliz sem dinheiro". Com isso, Benvindo pegou o pano de prato, enlaçou o pescoço d'Ella, beijou sua boca com força e disse: "tu estás mais jovem do que quando te conheci. teus olhos têm mais brilho".


E, que eu saiba, não se falou mais em bloco ou desemprego.

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