quinta-feira, 29 de novembro de 2012

família de bichos

Uma família de bichos reside no forro desta casa. Eles vivem aqui desde o verão passado. São cinco ou seis, pelos meus cálculos. Se bem que, não sei - podem ser mais. Nos dias frios eles ficam quietos, não se ouve arrasto ou guincho, creio que durmam aninhados. Nos dias quentes, eles perambulam pelo espaço. Brincam de roda na sala, trepam no quarto, tomam banho de língua no banheiro. Onde defecam ou o quê são não sei. O jardineiro subiu no telhado para desvendar o mistério. Não encontrou sequer uma fresta entre telhas e tábuas. Disse que devem ser insetos. Eu sei que é impossível, pois isetos não tomam banho de língua. O cachorro, coitado, não pode mais nem ouvir a palavra "bicho". Me olha com cara de tédio, como se me mandasse à merda, quase desaprendendo a palavra. Hoje, para ele, a palavra "bicho" tem mais a ver com deboche do que com a ordem de "pega". As paredes da casa estão repletas de marcas de patas, do tempo em que ele tinha esperança... Todos me perguntam como posso viver assim, em condomínio com ORNIs - objetos rastejadores não identificados. Dizem que devem ser banidos. Eu sei que sim, mas não. Gosto de barulho, desperta minha imaginação. Sem eles eu estaria trabalhando, eu estaria estudando, eu estaria dormindo, eu estaria cozinhando, eu estaria fazendo qualquer coisa menos escrevendo este texto. 

Sou muito à favor do maximizar o ínfimo. É o que nos mantém espertos.    



  

amor de mãe

há um amor que eu ainda não conheci, o de mãe. tive meros lampejos, em sonhos. meu filho era bebê, e meu. nós num colorido lomo, em movimentos suaves, com gosto doce e cheiro frutado... isso bastava para que borboletas voassem na minha barriga e para que tudo mais. eu não precisava de nada. plenitude rara e repentina mas, porque plenitude e generosa, não havia frustração quando eu acordava. só e descabelada, eu me olhava no espelho da vida, fiel ao que ela me guarda, com uma sensação imperiosa de suficiência. até que, sabotando esse estado de êxtase, a fim de tomar as rédeas rumo à cozinha e reabastecer o pote d'água dos cachorros, acionava a minha razão: acreditava entender o que Cazuza quis dizer com "só as mães são felizes" - ele, que também não era mãe.         

confidente irmã

Ter uma confidente irmã poupa-me esforços. Dispensa prefácios, preâmbulos, notas de rodapé. Explicações, contextualizações e ressalvas também. Basta o olhar, um suspiro ou um emotion - e tudo é imediatamente capturado. Até o que me escapa. 




[para Lara]

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

O Natal

O Natal frustra qualquer um, cristão ou não. Todo mundo quer estar e parecer mais feliz do que realmente está e parece. O grupo quer ser e parecer mais unido do que realmente está e parece. As comidas querem ser e parecer mais gostosas do que realmente são ou parecem. A decoração quer ser e parecer mais bacana do que... , bah, realmente. 

O Natal é fake! E quem disser que não, não sabe o que é um verdadeiro Natal.

"tu escreves muito bem

quando brincas com o português". é isso que eu diria a ele, sem me preocupar com o prefácio. ressalvas não esclarecem coisa alguma, meros floreios. ou recheios de linguiça. 

ressalvas não acertam porque não assertam.

por isso, absteria-me de incluir na oração a expressão "minha singela opinão", que, nada singela, toma o espaço de um avião no azul finito do campo de visão. 

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sexta-feira, 9 de novembro de 2012

chapéu

- Por quê?
- Quando eu souber, eu junto. E tiro o chapéu.

rol

1. o balde que vc chutou nunca mais será
2. o mesmo
3. taldo balde que vc chutou.  

ele quebra, ele lasca, ele racha, ele entorta, ele é outro.


então,  

Morte [II]

A mais ambígua lição da morte: "pense e não pense sobre o propósito".


Regina e o ovo [VI]


"Eu trouxe o livro. Terminei. Mas, devido ao encontro de ontem, excluí todas as palavras ovo. Susbtituí por amor. Achei mais apropriado. E verdadeiro", disse Paulo, abraçando Regina com o sorriso.  

Era um caderno grosso, tão surrado quanto o bloco de Regina. A última página estava marcada com um blíster vazio. Aceitando o recado, Regina foi direto alí, e leu em silêncio:



Estou preso dentro do amor.
Sua casca fina é o que me abriga. 
Não desejo sair daqui
Se não for para andar na rua
Contigo.

Eu dividiria um guarda-chuva Contigo,
Eu jogaria longe o guarda-chuva para te abraçar
Na chuva.


Espio pelas rachadaruas do amor
o que eu chamo de resto.
Me acostumo com as frestas,
confundo o que está fora ou dentro.
Por pouco nada reconheço.


Mas o abrigo da casca fina,
Abraço quase inexistente, que pena!
Me faz mais que ver melhor, enxergo 
Outros diversos mundos,  
Tantos quantos são os habitantes deste planeta, 
Ondezinhos, codornas!, não me encaixo
E não choro.


Porque estou separado do resto
Que não é o amor.
Nem passarinho, nem pinto,
nem dinnossauro, nem louco,
Eu estou são e certo.

Toda a lavrada loucura
cabe dentro desse amor.
E toda sensatez também. 
Tudo. Desde que seja nosso.
Até este caderno.

Nunca se viu amor assim como o meu, 
Gigante. A ponto de estar além de si,
Descobri faz pouco,
Quase agora.

Se cheguei até aqui, 
Caio, foi pelo amor.
Meu olho já não arde,
E nada fede.




Com o chão sobre a cabeça, Regina largou o livro de Paulo e escreveu em seu bloco surrado: "Paulo nasceu". Pela primeira vez, uma frase conclusiva estampava as folhas abauladas do seu bloco de anotações.

- Tu és poeta. E eu sou a cobaia, Sr. Paulo Hawking - disse ela, antes de chorar.


Regina e o ovo [V]

"A casca se quebrou. Vi o sol em toda a sua potência. Ele secou as minhas lágrimas. Meu olho parou de arder e agora sim, vejo melhor", disse Paulo, tirando os óculos fundo-de-garrafa.  Regina percebeu o quanto os olhos do hominis-ovum aumentavam sem os óculos. Sentiu um arrepio injustificado, naúsea. Mas seguiu adiante.

- Que bom, Paulo. E o quê tu vês? - disse.
- Vejo um mundo gigante coberto por pequenos ovos. Codornas. Acho que são codornas.
- Quantas? 
- Não sei, elas estão dentro dos ovos. 
- O que elas fazem?
- Nada, esperam. 
- Esperam o quê?
- A hora de sair. 
- Por quê?
- Porque estão quase prontas, ora.
- Elas vão nascer, é isso?
- Não. Elas já nasceram. 
- Então?
- Então elas só vão sair. É isso.
- E para quê?
- Para mudar de lugar. E para estar com o resto.
- Para ser o resto - concluiu Regina, inoportunamente.
- Não. Elas são codornas. O resto é o resto.

Fez -se o costumeiro silêncio e Regina pensou na inutilidade daquele trabalho com Paulo, nas voltas e mais voltas que vinham dando há 4 anos, no painel de cartões postais que representavam suas anotações inconclusivas no bloco surrado, no tempo. Eis que, sem racionalizar, foi à forra:

- Meu querido, eu sei que tu não és pinto nem passarinho. 
- Nem dinossauro - interrompeu Paulo.
- Okay. Então, se és homem, seja objetivo.
- Não posso.
- Por que não, Paulo?
- Eu sou poeta.
- Muito bem, poeta. Então me diga: o que o Sr. Poeta fez para estar aqui?

Mais uma pausa silenciosa, até Paulo abrir o jogo, eclodir:

- Tentei me matar. Admito. Com uma dieta exclusivamente à base de ovos. Meu colestreol subiu às alturas, tive alucinações, adoeci. Ridículo. Admito. Mas, quer saber? Isso não tem a menor relevância. A única coisa que realmente importa, e da qual me arrependo, é que dei a Caio a mesma dieta. Isso não foi justo.

Paulo nunca pareceu tão lúcido à Regina, e ela subitamente voltou a acreditar naquele trabalho árduo que finalmente apresentava frutos.  

- Sim, teu papagaio.  
- Ele tinha 40 anos e, pelos meus cálculos, viveria mais uns 30 ou 40. Se eu batesse as botas, ele fatalmente ficaria sem ninguém. E morreia à migua, o que é pior. Ninguém quer um bicho daqueles, especialmente Caio, que era tagarela e inteligente. Falava em rimas.    
- Nossa! - exclamou Regina, abismada.
- Eu tive a sensatez de evitar o abandono do bicho. Mas de forma cruel. Fiz dele um canibal.
- Calma, não é bem assim. Ele comia ovos.
- Fetos.

Paulo tirou os óculos de lentes fundo-de-garrafa e secou o suor das têmporas. Regina o observava, oscilando entre a piedade e a raiva, a compaixão e o desprezo.

- O que me consola é que graças essa dieta vim parar aqui - disse Paulo, buscando forças.
- Gostas daqui?
- Sim. Aqui eu vivo meus textos. Aqui eles aparecem como são.
- Isto é um hospício, Paulo - disse Regina, como se lamentasse a um colega.
- Isto é um laboratório, Dra. Regina Hilst.

A exatidão da afirmação de Paulo soou como uma paulada. Regina apagou tudo o que vinha pensando acerca daquele pobre homem sentando à sua frente. Zerou suas conclusões... mas recomeçou como uma avalanche. Perdeu o rebolado, desceu do salto.

- Louco!
- Pára! Sou um homem são, mais são do que quando cheguei aqui. Mas eu finjo que não. Nossas conversas aparecem na minha poesia e, por isso, ela não têm rima! Sempre almejei essa forma, espontânea e sóbria, pura e simples, natural. E só vim conseguir isso aqui, através do nosso trabalho - interrompeu Paulo. 
- Doido! Doente! Falso! Traidor! Assassino de papagaios! Poeta de merda! 
- Escolha uma das categorias, me classifique, me encaixe. Eu mereço um diagnóstico! Saio todos os dias dessa poltrona amarelo-gema com a cabeça fervendo, chego no meu dormitório e escrevo. Sobre o ovo e o resto. Sobre a nossa loucura, que caberia dentro de um ovo gigante, sobre a casca que nos separa do resto, sobre a fusão dos nossos gametas, sobre a fecundação. E o embrião - disse Paulo com um sorriso nos olhos.  
-  Estás dizendo que a cobaia sou eu?
- Sim. Te examinei o tempo todo. Te usei.
- Não pode ser... - disse Regina num riso destrambelhado.
- É o que fazem os poetas com suas musas. E o livro está quase pronto.
- Quanta idiotice deve ter nesse livro! Eu quero ler essa joça! Tu me deves isso!
- Tudo bem.
- Amanhã - ordenou Regina.
- Amanhã - concordou Paulo.

Regina guardou o bloco abaulado que quase já não cabia no vão encardido da poltrona amarelo-gema e se levantou. Paulo pôs-se em pé, diante da musa ruiva, e esboçou um abraço. Ela deu um passo para trás, negando, sem se arrepeder mais tarde, o contato físico com aquele louco que se dizia poeta. E Paulo saiu da sala, para terminar de escrever o livro.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Regina e o ovo [IV]

"Eu não esqueci que não sou um pinto. Depois que comi o ovo gigante da minha loucura, fiquei grande demais para permanecer nessa casca. Ela me aperta. Quero andar na rua. Contigo", disse Paulo, pela primeira vez referindo-se ao outro. "Contigo", ele disse. 

Regina sentiu o coração disparar. Sua tez de boneca de porcelana brilhou. Seus cabelos ruivos incendiaram. E, dessa vez, quem fugiu do assunto foi ela:

- Só comigo?
- Sim.
- Por quê?
- Porque podemos comer o omelete juntos.
- Como? - insistiu, com olhar de cientista maluca.
- Dizem que ovo podre faz muito mal. E eu nunca quis morrer sozinho.
- Por isso fizeste o que fizeste?


Paulo curvou-se feito um tatu-bola e perdeu-se em pensamentos. Regina pulava de foco em foco, e não achava palavras para expressar no bloco de anotações aquela pausa abrupta, o clímax daquele estampido mudo. 

- Paulo, para enxergares a rua, primeiro terás de reconhecer tudo o que tem dentro do ovo gigante - foi o que Regina conseguiu falar. 
- Estou tão acostumado com as rachaduras que já não sei o que está fora ou dentro.
- Seja mais específico. 
- Acostumei com tudo o que vejo e já não reconheço coisa nenhuma. É isso.
- Paulo, tu precisas ver melhor.
- Como?
- Até se deparar com o germe desse mostro gigante que tu chamas de ovo. Descobrir o que é, afinal, esse ovo.
- Cansei. Estou suando muito. O suor entra no olho. Arde.
- E a vontade de andar na rua?
- Desandou. E está fedendo. 

Dito isso, Paulo calou-se. Regina também. Ele balançava a perna cruzada, espantando moscas invisíveis. Regina anotou no bloco surrado: "Parece que Paulo não quer nascer". 

O passeio havia sido negado pela direção. Paulo continuaria em espera, até segunda ordem.  Regina não insistiu, nem lamentou. 

Um homem só nasce quando está pronto, e Paulo não estava. Ainda.

Regina e o ovo [III]

"Ovos quebrados não têm conserto, ainda que façam um bom omelete", Paulo disse antes de se calar por exatos 16 minutos. Regina segurou o silêncio como um halterofilista. 
 
Ela sabia que Paulo era mais afeito à visão que ao paladar, que transpirava em excesso, que fugia de respostas diretas, que evitava contato físico, que detestava calor e guarda-chuvas, que se sentia preso, que temia perder o abrigo daquilo que justamente o prendia e que julgava poder colocar toda a sua loucura dentro de um ovo gigante. Mas Regina não sabia ao certo o que Paulo estava dizendo com aquela frase surrealista ou mesmo dadaísta, metafórica, poética, ridícula, neurótica ou mesmo esquizofrênica. E dessa vez não tentou buscar a resposta. Permaneceu calada, observando Paulo sem anotar sequer uma palavra.  

O tempo passava lento para Regina. Para Paulo o tempo não passava. 

Ela fez uma lista mental do supermercado. Ele sentia sede, mas não transpirava.  Era inverno novamente.


Passados os 16 minutos, Paulo declarou:

- Acho que precisamos sair desta sala. Aqui não é igual a lá fora. Precisamos andar na rua.
- Para quê? - provocou Regina.
- Para provar o omelete.
- Isso não é permitido, vai contra o regulamento.
- Mas estou tomando coragem. Estou disposto a sair da casca.
- Tu não és um pinto - disse Regina, inquieta.  
- Hã?

Falsamente plácida, Regina deu o tempo necessário para que Paulo pensasse sobre a própria proposta e retomasse a conversa. Paulo estava longe, parecia atravessar as fronteiras demarcadas pelas margens dos cartões postais reunidos naqueles 4 anos. Enquanto isso, passavam-se os 22 minutos mais longos da história profissional de Regina.

- O confinamento não me transborda mais - disse Paulo, absorto.
-  Mas e o medo de abandonar o abrigo?
- Eu não sou um pinto. Não sou mais.
- E o ovo gigante?
- Eu comi. Digeri a loucura. Estou são. E desistindo.
- Desistindo do quê?
- De esperar.
- Esperar o quê?
- Ser aumentado, correspondido.
- E achas que será bom lá fora? 
- A vida inteira espiei pelas rachaduras.
- Okay, vou pedir autorização para a direção. Quem sabe amanhã.

Findo o encontro, Paulo estendeu a mão para Regina. E ela retribuiu o gesto sem hesitar. 


Agora Regina sabia mais. Sabia que Paulo tinha as mãos frias e que se julgava são.

Regina e o ovo [II]

"Eu me sinto envolto numa casca que me prende e me separa do resto. Se eu correr, temo quebrar a casca e nunca mais ter onde me abrigar",  disse Paulo com os óculos embaçados. Nem os 18 graus do ar condicionado aliviavam a transpiração daquele homem com pinta de oriental. Regina estava à sua frente, com a tez intacta, parecendo uma boneca de porcelana. Só o bloco surrado em que anotava as falas de Paulo revelava que ela era real, que vivia a passagem do tempo como qualquer mortal. 

Nesse dia tórrido, ambos estavam num oásis e a questão da casca veio à tona.

- Por isso tu transpiras assim? - perguntou Regina.
- Sempre preferi o inverno. Detesto calor - respondeu Paulo, suando.


Nenhuma pergunta era respondida de imediato por Paulo. Regina sabia que teria de se esforçar para obter qualquer informação que desejasse. 

- A casca te sufoca? - insistiu.
- Ela me prende, me impede de chegar até a água. Sinto sede, mas o desânimo é maior. Estou transpirando demais, não é?
- Não. Para quem vive envolto numa casca, até que estás bem seco.
- Hã? 

Sem saber o que dizer Regina fixou os olhos no pescoço de Paulo, que pingava feito goteira no temporal. Lembrou que não havia fechado o registro da máquina de lavar roupas. Depois lembrou da conta de luz. E da lâmpada queimada no banheiro.

- A questão é que a casca me separa dos outros, do mundo, do mundo dos outros - disse Paulo, tentando retomar o assunto. 
- Quantos mundos existem, Paulo?
- Tantos quantos forem os habitantes deste planeta, penso eu. 
- E cada um vive numa casca?
- Só os covardes... - falou baixo, com um sorriso estranho - e os tímidos - completou.
- E em qual tu te encaixas?
- Eu não me ancaixo. Estou separado do resto. Meu isolamento me torna incomparável. 
- Entendo - disse Regina sem entender. 

Às vezes Regina mentia - para confortar Paulo, para mudar de assunto ou trocar de paisagem, e para dar tempo de anotar. Depois, ao rever as anotações, arrependia-se.

- Está calor... é bom ficar na chuva, mas eu não gosto - continuou Paulo. 
- Preferes ficar abrigado?Ainda que apartado do "resto"?
- Sim. Mas o incrível é que destesto guarda-chuvas.
- E abraçar? - provocou Regina.
- Neste aspecto, gosto de guarda-chuvas. Ocupam os braços.
- Sei. 

Dessa vez, Regina entendeu. Não estava mentindo.

Paulo levantou da poltrona forrada de um amarelo mais vivo, secou o suor da testa com as costas da mão esquerda e não estendeu a direita para Regina. Mas disse "até amanhã". 

Regina e o ovo [I]

"Toda a minha loucura cabe dentro do ovo, ovo gigante, o mais gigante que possa ser", disse ele, com cara de intelectual. Usava óculos de lentes e aros grossos que acentuavam sua postura nipônica. Vestia uma camisa xadrez e um allstar canoa, gasto. Tudo azul. A perna esquerda estava cruzada sobre a direita. Sua expressão esboçava a paz que ainda estava por vir. Seu futuro seria diferente do que havia planejado, mas infinitamente melhor. Seu nome é Paulo. E a mulher ruiva sentada à sua frente era Regina. 


Num bloco surrado, Regina anotava frases esparsas, especialmente coisas que Paulo falava sem dar a devida importância. O bloco nem fechava mais, de tão usado. Páginas abauladas continham o material necessário para o relatório conclusivo e o consequente processo de reparação. O bloco surrado, de certa forma, era ovo. Para Regina, era.

No final dos encontros, Paulo nunca abraçava Regina. Ela desejava ao menos um aperto de mão. Mas não. Paulo evitava o contato físico, por mais ínfimo que fosse. Regina guardava esse desejo com culpa, mas com uma inconsciência diretamente proporcional. Esse fato, portanto, não entrava no ovo que Regina queria completo. E gigante.  


No final do encontro seguinte, em que Paulo estava mais assertivo e Regina fez muitas anotações, o homem meio japa estendeu a mão na direção da mulher ruiva. Como num reflexo invertido, ela lançou a mão pra trás, e, quando percebeu, disfarçou, afrouxando o cinto que lhe marcava a cintura. Paulo saiu sem dizer nada. Regina sentou na poltrona amarela e teve vontade de chorar. Mas não chorou. 

Faz quarto anos que Regina não chora. Faz quatro anos que conhece Paulo. Faz quatro anos que o tal ovo só aumenta. 

Até agora nenhum diagnóstico, nenhum veredicto. Só aquela espécie de inquérito que não chegava a lugar algum. Só o caminho de 1.460 dias traduzidos em paisagens inóspitas, nas quais Regina não tinha vontade de ficar. Quando encontrava um oásis, ansiava o deserto; quando encontrava o deserto, buscava água - cobiçava a chuva ou o mar.  E assim construía-se o relatório nada conclusivo, que mais parecia um painel de cartões postais de uma vida inteira com férias anuais. 

A demora era o alimento do ovo, que, por sua vez, nutria aquela investigadora ruiva que desaprendeu a chorar. E as coisas ditas por Paulo, no ver da cientista ruiva, eram o próprio ovo ainda não suficientemente gigante. 

Até onde se estenderiam esses encontros? Até quando?

Regina não tinha pressa e Paulo não tinha foco - conjuntura perfeita para o agigantamento do ovo. 

domingo, 4 de novembro de 2012

Morte [I]

A maior lição da morte: "a vida é hoje".

A morte não muda só os mortos. A morte não só mata. 





Obs. Não estou sendo romântica. Estou sendo prática.




sexta-feira, 2 de novembro de 2012

tempo represado

sorria, você está sendo eternizado. 
não adianta emagrecer ou pintar o cabelo. não adianta mudar, nem morrer.

ironia

Se eu fosse uma cafeteira, teria capacidade para 36 cafézinhos.

E se eu fosse um pendrive, seria de 1 GB.