"Eu me sinto envolto numa casca que me prende e me separa do resto. Se eu correr, temo quebrar a casca e nunca mais ter onde me abrigar", disse Paulo com os óculos embaçados. Nem os 18 graus do ar condicionado aliviavam a transpiração daquele homem com pinta de oriental. Regina estava à sua frente, com a tez intacta, parecendo uma boneca de porcelana. Só o bloco surrado em que anotava as falas de Paulo revelava que ela era real, que vivia a passagem do tempo como qualquer mortal.
Nesse dia tórrido, ambos estavam num oásis e a questão da casca veio à tona.
- Por isso tu transpiras assim? - perguntou Regina.
- Sempre preferi o inverno. Detesto calor - respondeu Paulo, suando.
Nenhuma pergunta era respondida de imediato por Paulo. Regina sabia que teria de se esforçar para obter qualquer informação que desejasse.
- A casca te sufoca? - insistiu.
- Ela me prende, me impede de chegar até a água. Sinto sede, mas o desânimo é maior. Estou transpirando demais, não é?
- Não. Para quem vive envolto numa casca, até que estás bem seco.
- Hã?
Sem saber o que dizer Regina fixou os olhos no pescoço de Paulo, que pingava feito goteira no temporal. Lembrou que não havia fechado o registro da máquina de lavar roupas. Depois lembrou da conta de luz. E da lâmpada queimada no banheiro.
- A questão é que a casca me separa dos outros, do mundo, do mundo dos outros - disse Paulo, tentando retomar o assunto.
- Quantos mundos existem, Paulo?
- Tantos quantos forem os habitantes deste planeta, penso eu.
- E cada um vive numa casca?
- Só os covardes... - falou baixo, com um sorriso estranho - e os tímidos - completou.
- E em qual tu te encaixas?
- Eu não me ancaixo. Estou separado do resto. Meu isolamento me torna incomparável.
- Entendo - disse Regina sem entender.
Às vezes Regina mentia - para confortar Paulo, para mudar de assunto ou trocar de paisagem, e para dar tempo de anotar. Depois, ao rever as anotações, arrependia-se.
- Está calor... é bom ficar na chuva, mas eu não gosto - continuou Paulo.
- Preferes ficar abrigado?Ainda que apartado do "resto"?
- Sim. Mas o incrível é que destesto guarda-chuvas.
- E abraçar? - provocou Regina.
- Neste aspecto, gosto de guarda-chuvas. Ocupam os braços.
- Sei.
Dessa vez, Regina entendeu. Não estava mentindo.
Paulo levantou da poltrona forrada de um amarelo mais vivo, secou o suor da testa com as costas da mão esquerda e não estendeu a direita para Regina. Mas disse "até amanhã".
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