sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Regina e o ovo [V]

"A casca se quebrou. Vi o sol em toda a sua potência. Ele secou as minhas lágrimas. Meu olho parou de arder e agora sim, vejo melhor", disse Paulo, tirando os óculos fundo-de-garrafa.  Regina percebeu o quanto os olhos do hominis-ovum aumentavam sem os óculos. Sentiu um arrepio injustificado, naúsea. Mas seguiu adiante.

- Que bom, Paulo. E o quê tu vês? - disse.
- Vejo um mundo gigante coberto por pequenos ovos. Codornas. Acho que são codornas.
- Quantas? 
- Não sei, elas estão dentro dos ovos. 
- O que elas fazem?
- Nada, esperam. 
- Esperam o quê?
- A hora de sair. 
- Por quê?
- Porque estão quase prontas, ora.
- Elas vão nascer, é isso?
- Não. Elas já nasceram. 
- Então?
- Então elas só vão sair. É isso.
- E para quê?
- Para mudar de lugar. E para estar com o resto.
- Para ser o resto - concluiu Regina, inoportunamente.
- Não. Elas são codornas. O resto é o resto.

Fez -se o costumeiro silêncio e Regina pensou na inutilidade daquele trabalho com Paulo, nas voltas e mais voltas que vinham dando há 4 anos, no painel de cartões postais que representavam suas anotações inconclusivas no bloco surrado, no tempo. Eis que, sem racionalizar, foi à forra:

- Meu querido, eu sei que tu não és pinto nem passarinho. 
- Nem dinossauro - interrompeu Paulo.
- Okay. Então, se és homem, seja objetivo.
- Não posso.
- Por que não, Paulo?
- Eu sou poeta.
- Muito bem, poeta. Então me diga: o que o Sr. Poeta fez para estar aqui?

Mais uma pausa silenciosa, até Paulo abrir o jogo, eclodir:

- Tentei me matar. Admito. Com uma dieta exclusivamente à base de ovos. Meu colestreol subiu às alturas, tive alucinações, adoeci. Ridículo. Admito. Mas, quer saber? Isso não tem a menor relevância. A única coisa que realmente importa, e da qual me arrependo, é que dei a Caio a mesma dieta. Isso não foi justo.

Paulo nunca pareceu tão lúcido à Regina, e ela subitamente voltou a acreditar naquele trabalho árduo que finalmente apresentava frutos.  

- Sim, teu papagaio.  
- Ele tinha 40 anos e, pelos meus cálculos, viveria mais uns 30 ou 40. Se eu batesse as botas, ele fatalmente ficaria sem ninguém. E morreia à migua, o que é pior. Ninguém quer um bicho daqueles, especialmente Caio, que era tagarela e inteligente. Falava em rimas.    
- Nossa! - exclamou Regina, abismada.
- Eu tive a sensatez de evitar o abandono do bicho. Mas de forma cruel. Fiz dele um canibal.
- Calma, não é bem assim. Ele comia ovos.
- Fetos.

Paulo tirou os óculos de lentes fundo-de-garrafa e secou o suor das têmporas. Regina o observava, oscilando entre a piedade e a raiva, a compaixão e o desprezo.

- O que me consola é que graças essa dieta vim parar aqui - disse Paulo, buscando forças.
- Gostas daqui?
- Sim. Aqui eu vivo meus textos. Aqui eles aparecem como são.
- Isto é um hospício, Paulo - disse Regina, como se lamentasse a um colega.
- Isto é um laboratório, Dra. Regina Hilst.

A exatidão da afirmação de Paulo soou como uma paulada. Regina apagou tudo o que vinha pensando acerca daquele pobre homem sentando à sua frente. Zerou suas conclusões... mas recomeçou como uma avalanche. Perdeu o rebolado, desceu do salto.

- Louco!
- Pára! Sou um homem são, mais são do que quando cheguei aqui. Mas eu finjo que não. Nossas conversas aparecem na minha poesia e, por isso, ela não têm rima! Sempre almejei essa forma, espontânea e sóbria, pura e simples, natural. E só vim conseguir isso aqui, através do nosso trabalho - interrompeu Paulo. 
- Doido! Doente! Falso! Traidor! Assassino de papagaios! Poeta de merda! 
- Escolha uma das categorias, me classifique, me encaixe. Eu mereço um diagnóstico! Saio todos os dias dessa poltrona amarelo-gema com a cabeça fervendo, chego no meu dormitório e escrevo. Sobre o ovo e o resto. Sobre a nossa loucura, que caberia dentro de um ovo gigante, sobre a casca que nos separa do resto, sobre a fusão dos nossos gametas, sobre a fecundação. E o embrião - disse Paulo com um sorriso nos olhos.  
-  Estás dizendo que a cobaia sou eu?
- Sim. Te examinei o tempo todo. Te usei.
- Não pode ser... - disse Regina num riso destrambelhado.
- É o que fazem os poetas com suas musas. E o livro está quase pronto.
- Quanta idiotice deve ter nesse livro! Eu quero ler essa joça! Tu me deves isso!
- Tudo bem.
- Amanhã - ordenou Regina.
- Amanhã - concordou Paulo.

Regina guardou o bloco abaulado que quase já não cabia no vão encardido da poltrona amarelo-gema e se levantou. Paulo pôs-se em pé, diante da musa ruiva, e esboçou um abraço. Ela deu um passo para trás, negando, sem se arrepeder mais tarde, o contato físico com aquele louco que se dizia poeta. E Paulo saiu da sala, para terminar de escrever o livro.

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