quarta-feira, 1 de maio de 2013

O Encontro



Essa mulher existe inobstante somente eu a veja. Quando aparece, ilumina o caminho. E o entorno deixa de ser aquele. Tudo abranda, dissatura. Uma espécie de luz a permeia – ela parece estar prestes a se desmanchar no ar. Mas não. Ela é feita de carne e tempo, sua matéria é igual a minha. Ela é só uma mulher. Mas sim (e tem gente que duvida).

Velha. Idade indefinível. Mãos brancas com veias salientes, azuis. Mãos que já escreveram muito e que talvez por isso exibam veias assim, dilatadas, desenvolvidas, envolventes. Se romper uma dessas mangueiras vitais, jorrará um caldo azul royal que pintará o mundo. Para sempre. 

Na primeira vez em que a vi, ela estava sentada num café muito charmoso na Rua Morom. Vestia preto e anotava coisas num pequeno bloco estampado de flores. Tons berrantes que não combinavam com ela. Acho que ganhou de presente, o bloco. 

Sentei à sua frente, em outra mesa. Não pude deixar de notar aquela figura de tez extraordinariamente pálida, rugas sinuosas que pareciam desenhadas à nanquim, cabelos grisalhos presos numa trança em coque, corpo magro porém vigoroso. Usava óculos e batom claro. Fumava. 

Minha vontade de fumar só não foi mais forte que a vontade de falar com ela. Sem cerimônia nem licença, pedi-lhe um cigarro. Ela me alcançou um maço de Charm e um Zippo dourado. Luxo. 

Logo que dei a primeira tragada, em pé, ela me convidou para sentar à sua mesa. Disse isso fechando ternamente o bloco estampado. Aceitei o convite e me instalei tão perto dela que dava para sentir o seu perfume. Amadeirado e discreto. 

A princípio, a mudez da anfitriã me perturbou um pouco - nenhuma palavra para quebrar silêncio, nenhum gesto para preencher vazio. Acatei o silêncio. Cerca de dois minutos nisso, ela começou a falar. Disse ser escritora, que publicava livros desde 68, todos sob um pseudônimo. Contou que nasceu no Chile, de pai austríaco e mãe polonesa, ambos professores, e que veio para o Brasil ainda bebê, cresceu no Rio de Janeiro, estudou em Porto Alegre e mudou-se para cá, onde casou e viuvou. Contou que durante a ditadura militar teve de ocultar a verdadeira identidade, para sobreviver em todos os sentidos - escrever e respirar -, e que mesmo com a Abertura manteve o pseudônimo porque seu nome de registro havia morrido de exaustão. Depois, ela apenas quis saber de mim. 

Falei feito rádio, enquanto ela me ouvia, plácida e interessada. Sem me interromper, empática como uma mãe, teceu breves e estranhos comentários:

- Tu desenhas enquanto falas. Isso é coisa de escritor. É inócuo resistir – comentou tragando o primeiro cigarro. Admirei sua convicção.
- Tu pareces uma menina. Talvez a vida ainda não tenha te dado pedras bastantes para te esfolar. Quem sabe és tu que terás de buscar as pedras – comentou apagando o terceiro cigarro. Percebi sua perspicácia.
 - Tu te expressas muito bem para uma pessoa com tantas hesitações. Forma e conteúdo têm de pelear para encontrar o passo adiante. Isso é formidável. Demasiadamente humano. Sedutor – comentou acendendo o quinto cigarro. Desejei ser sua amiga.
- Tu deves errar mais. Errar é profícuo. E é o único jeito de existir. Verdadeiramente – comentou puxando do maço o último cigarro. Senti que nos tornamos amigas.

Saí do café só depois de vê-la ir embora. Precisei de quase uma hora para processar o encontro e refazer meu trajeto. Desisti de ir ao banco. Deixei o cinema para outro dia. Não passei na padaria. Fui direto para o sofá de casa, ler meus pensamentos, que estouravam no teto e escorriam pelas paredes, almofadas, meu corpo estirado entre almofadas e os livros da estante. Tudo boiava. Mareei. Os polos foram mexidos. O magnetismo dessa mulher que existe, inobstante somente eu a veja, é implacável (e tem gente que duvida).

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