Essa mulher existe inobstante
somente eu a veja. Quando aparece, ilumina o caminho. E o entorno deixa de ser
aquele. Tudo abranda, dissatura. Uma espécie de luz a permeia – ela parece
estar prestes a se desmanchar no ar. Mas não. Ela é feita de carne e tempo, sua
matéria é igual a minha. Ela é só uma mulher. Mas sim (e tem gente que duvida).
Velha. Idade indefinível. Mãos
brancas com veias salientes, azuis. Mãos que já escreveram muito e que talvez
por isso exibam veias assim, dilatadas, desenvolvidas, envolventes. Se romper uma dessas mangueiras vitais, jorrará um caldo azul royal que pintará o mundo.
Para sempre.
Na primeira vez em que a vi, ela
estava sentada num café muito charmoso na Rua Morom. Vestia preto e anotava
coisas num pequeno bloco estampado de flores. Tons berrantes que não combinavam
com ela. Acho que ganhou de presente, o bloco.
Sentei à sua frente, em outra
mesa. Não pude deixar de notar aquela figura de tez extraordinariamente pálida,
rugas sinuosas que pareciam desenhadas à nanquim, cabelos grisalhos presos numa
trança em coque, corpo magro porém vigoroso. Usava óculos e batom claro.
Fumava.
Minha vontade de fumar só não foi
mais forte que a vontade de falar com ela. Sem cerimônia nem licença, pedi-lhe
um cigarro. Ela me alcançou um maço de Charm
e um Zippo dourado. Luxo.
Logo que dei a primeira tragada,
em pé, ela me convidou para sentar à sua mesa. Disse isso fechando ternamente o
bloco estampado. Aceitei o convite e me instalei tão perto dela que dava para
sentir o seu perfume. Amadeirado e discreto.
A princípio, a mudez da anfitriã
me perturbou um pouco - nenhuma palavra para quebrar silêncio, nenhum gesto
para preencher vazio. Acatei o silêncio. Cerca de dois minutos nisso, ela começou a falar. Disse
ser escritora, que publicava livros desde 68, todos sob um pseudônimo. Contou
que nasceu no Chile, de pai austríaco e mãe polonesa, ambos professores, e que
veio para o Brasil ainda bebê, cresceu no Rio de Janeiro, estudou em Porto
Alegre e mudou-se para cá, onde casou e viuvou. Contou que durante a ditadura
militar teve de ocultar a verdadeira identidade, para sobreviver em todos os
sentidos - escrever e respirar -, e que mesmo com a Abertura manteve o
pseudônimo porque seu nome de registro havia morrido de exaustão. Depois, ela
apenas quis saber de mim.
Falei feito rádio, enquanto ela
me ouvia, plácida e interessada. Sem me interromper, empática
como uma mãe, teceu breves e estranhos comentários:
- Tu desenhas enquanto falas.
Isso é coisa de escritor. É inócuo resistir – comentou tragando o primeiro
cigarro. Admirei sua convicção.
- Tu pareces uma menina. Talvez a
vida ainda não tenha te dado pedras bastantes para te esfolar. Quem sabe és tu
que terás de buscar as pedras – comentou apagando o terceiro cigarro. Percebi sua
perspicácia.
- Tu te expressas muito bem
para uma pessoa com tantas hesitações. Forma e conteúdo têm de pelear para
encontrar o passo adiante. Isso é formidável. Demasiadamente humano. Sedutor –
comentou acendendo o quinto cigarro. Desejei ser sua amiga.
- Tu deves errar mais. Errar é
profícuo. E é o único jeito de existir. Verdadeiramente – comentou puxando do maço o
último cigarro. Senti que nos tornamos amigas.
Saí do café só depois de vê-la ir
embora. Precisei de quase uma hora para processar o encontro e refazer meu
trajeto. Desisti de ir ao banco. Deixei o cinema para outro dia. Não passei na
padaria. Fui direto para o sofá de casa, ler meus pensamentos, que estouravam no
teto e escorriam pelas paredes, almofadas, meu corpo estirado entre almofadas e os livros da estante.
Tudo boiava. Mareei. Os polos foram mexidos. O magnetismo dessa mulher que
existe, inobstante somente eu a veja, é implacável (e tem gente que duvida).
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