segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Eu, Dulce Jane e Ana Cristina

Tentei me conectar à internet, mas não deu. Me restou o Word. Escrever. Até agora nenhuma idéia, apenas a espera do sabe-se lá o quê. É um dia cinza, no aparelho toca Nina Simone e já bebi mais de três cafés. Estou lendo O Retrato de Doryan Gray. Isto aqui é apenas uma pausa. Esse livro requer pausas. Não sei por que lembrei da seguinte frase do Wilde: “Por traz de toda grande beleza repousa algo de trágico”, que gostei e anotei enquanto lembrava a do Francis Bacon: “Não há beleza excepcional que não tenha alguma estranheza nas proporções”. A beleza e o trágico. A beleza e o estranho. O trágico é estranho. O esquisito encanta. A tristeza é senhora. Tudo fecha.

Hoje aceito minhas estranhezas, e minha veia trágica já não me incomoda. São minha segunda-pele. Não se separam de mim e quase não se reparam também. “Personalidade melancólica”, já me disseram. Seja lá o que isso for, eu concordei. Não gosto de falar de mim. Gosto de escrever sobre mim. Porque tantos mins aparecem nesses escritos que quando vejo não sou mais eu. Invento um eu. Brinco de não ser.

Nunca sou completamente eu quando escrevo. Às vezes disponho as palavras na tela do computador só porque as acho bonitas. Nem sempre a frase fica boa. E só. 

Escrevo com a cabeça daquele mim que escreve. Personagem e narrador. Escritor. Escrevedor.

Não encontro nada para contar. Qualquer coisa. Nada. Só remar e remar. Nadar. Realmente é uma pena que eu não tenha conseguido me conectar, mas já lamentei uma vez. Rema-rema. Barco. Bote. Jangada. Adoro jangadas.

[Pausa]. Na mexida das águas se desenha uma estória:

O Retrato de Dulce Jane (por Dulce Jane)


Hoje é minha primeira noite sem Ele. Estou perdida. Não sei o que fazer. Dúvida. Quem sabe um café. Bem forte e com pouco açúcar. Depois dessa xícara tudo ficará mais claro.

Estar solteira me emociona. Já senti isso antes. Eu lembro. 

Sairei para dançar. A mente agradece.

Primeiro passo: uma música animada. Agora. Aqui mesmo. No apartamento de janelas enormes. Tirar do armário todos os vestidos pretos, as botas de salto e experimentar. Fazer uma maquiagem que disfarce as olheiras. Vou me corrigir. Photoshop material.

Sou livre. Nem tão leve ainda. Mas solta, avulsa. Peça única no balaio. Estou eufórica! Adeus corpo inerte na trama, adeus dedicação a coisas que não me dizem respeito. De agora em diante só tenho a mim como objeto de meus cuidados. E começarei os trabalhos me divertindo.

Segundo passo: ligar para um amigo homem, para que as chances de falar em separação diminuam - quero alguém que não fale de política, arte, filosofia, cinema e separação. O que sobra? Música. Sim, sempre sobra a música. 

Hoje me serve alguém com muita testosterona. Que beba bastante. Que fume. Que seja um tanto insensível. Bastante prático. Que fale sobre música. E muito. Hoje só quero ser ouvidos. Quero ver pelos olhos de outra pessoa. Quero realmente sair de mim.

[Pausa]. Só que s empre acabo saindo pela porta que está aberta:

Farei escrevendo.

Começo por uma carta dirigida ao famoso homem que saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. Quem escreve é Ana Cristina, a protagonista. Ela é muito meiga, bem diferente de mim. [Sweet Jane dos pampas]. 

Está tudo tão bege desde que você se foi. Sinto falta das nossas tardes de sábado junto às nossas plantas, habitantes de vasos vagabundos. Vasos de lata de tinta. Lata de azeite. Garrafas pet. Sinto falta dos nossos domingos sem tédio, assistindo TV. Sinto falta da tua barba por fazer. Do teu cheiro sem banho. Dos teus chinelos rotos emoldurando tuas canelas finas. Fui eu quem te deu. Faz tanto tempo. Estão rotos.

Não consigo te excluir dos meus planos, te arrancar dos meus sonhos. Te imagino sozinho no apartamento. A louça suja na pia. Tua gaveta de meias vazia. Todas sujas. Tudo sujo. E nossas plantas murchando. Que dor! “É necessário dar espaço para a dor”, me aconselhou Margaritte Duras.

[Pausa]. A porta aberta me levou de volta a mim.

É tudo estória e já bebi cinco cafés.
FINS
                                                                                                                      [novembro de 2005]

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