quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Bosch, o estranho (e seu jardim delicioso)

trecho da leitura de imagem da obra "O jardim das delícias", de Hieronimus Bosch

texto na íntegra no blog http://temnosotao.blogspot.com/


Segundo o padre José de Sigüenza (séc. XVI), em História da Ordem de São Jerônimo: “a diferença, que no meu entender, existe entre as pinturas deste homem [Bosch] e a dos outros é que os demais procuraram pintar o homem tal como ele parece externamente; apenas este se atreveu a pintá-lo como ele é por dentro” (Mestres da Pintura, 1977, p. 05).   

Bosch viveu num período particularmente crítico: o da passagem do feudalismo ao capitalismo comercial, passagem de um modo de vida a outro, que, no campo cultural, foi marcada pelo Renascimento. Entretanto, Bosch não é um representante dos ideais humanistas e da vontade de dominação material e espiritual do mundo; pelo contrário, Bosch representa o limite de uma percepção da realidade em vias de extinção – uma das expressões mais altas e alucinadas do mundo medieval.

Segundo Ludwig Von Baldass:   

“Pelos problemas que coloca, ele está absolutamente sozinho. É o grande solitário da história da arte; é o pintor que, através de sua arte – que está historicamente a altura de sua época – quer mais que os outros. Não aspira a divertir, a instruir ou a educar, mas a criticar e a profetizar". (Mestres da Pintura, 1977, p. 06).  
A incerteza acerca da vida e Bosch é tão grande quanto à do sentido de sua obra - já foram propostas diversas interpretações de O Jardim das Delícias, havendo um consenso acerca do sentido global da obra: o pecado original gerou no Paraíso um mal que se alastrou pela Terra e cujo castigo é o sofrimento do Inferno (tema recorrente em sua obra).     

Segundo Robert Cumming, (Para Entender a Arte, p. 24):

“Sua visão da humanidade é pessimista e moralizadora: o ser humano carrega uma falha fundamental desde a expulsão de Adão e Eva do Jardim de éden. Na filosofia de Bosch, a salvação é possível, porém com grande dificuldade, e o destino provável da maioria das pessoas é a danação eterna. A morte e o medo da morte são uma realidade sempre presente na sua arte”.

Não sei se de fato a obra é moralizadora ou irônica. A obra mostra as conseqüências do pecado, a trajetória do homem que parte do Paraíso, seu lar antes de sua queda, e passa pelos pecados terrenos até chegar ao inferno. Se Bosch representa, assim, a condenação do homem em razão de sua vida pecadora na Terra ou se faz disso um palco para reflexão, dotado de bom-humor e celebração, não se pode afirmar. 

Embora possa haver uma conotação moralizadora nessa obra, no painel central percebo certa simpatia do pintor em relação à cena: pela alegria, pelo humor explícito e pelo “algo de” doce e ingênuo na forma como ele nos mostra o pecado da luxúria - mesmo nas imagens que chocam pela estranheza e crueldade, como no homem com a cabeça submersa no lago, que segura seus genitais com uma framboesa (podre?) entre suas pernas. Para meu olhar contemporâneo, soa como uma “crueldade delicada” (pelas formas arredondadas, cores alegres e doces), e talvez por isso as imagens me sejam antes bizarras que violentas. Segundo COPPLESTONE (p. 56): “O curioso efeito geral desta orgia pastoral é de pacífica inocência e de uma delícia verdadeira”. Sim, a paisagem apresentada é por mim vista como uma espécie de “parque de diversões”, habitado por estranhos animais, pássaros gigantes, curiosas formas vegetais, frutas vermelhas e conchas enormes, onde homens e mulheres (pequenos em relação aos elementos, o que pode ser crítica à pequenez no homem) se divertem com suas acrobacias sexuais.     

Fraenger, estudioso da obra de Bosch, entende que o pintor não utilizaria cores e formas tão encantadoras para um objeto que queria representar como condenável - o que vem a sustentar minha opinião sobre a predominância da ironia em relação à moralização. Não obstante haja uma crítica, não podemos saber ao certo até que ponto Bosch estaria condenando esses homens, até que ponto houve esta é uma visão moralizadora. As imagens seduzem, atraem por sua beleza formal e pela estranheza, pela “bizarrice” das cenas - e acabamos deixando em segundo plano a condenação moral que para tantos estudiosos seria o cerne da obra de Bosch.

O universo apresentado por Bosch em O Jardim das Delícias é surpreendente e confirma a peculiaridade da sua visão de mundo tão apontada pelos historiadores – visão esta que parece vir à tona, de forma inconsciente, nesse trabalho. Não é a toa que os surrealistas têm sua obra como referência! O fato de sua obra ter sido produzida na segunda metade do século XV, no auge do Renascimento mas fora dos cânones renascentistas, a torna uma obra diferenciada: Bosch continuava apegado às questões do medievo e produzindo imagens surreais, numa cidade provinciana povoada por religiosos conservadores. Foi um artista conservador, pelo apego ao medievo, mas moderno pela coragem de pintar o homem por dentro. Foi irônico e/ou moralista. Foi polêmico. Sua poética torna inevitável tentar imaginar a reação das pessoas da época ao se depararem com seus quadros - tarefa quase tão impossível quanto entender a obra (e as intenções) desse artista tão singular.      

BOSING, Walter. Hieronymus Bosch. Londres: Taschen, 1991. p. 51-57.
COPPLESTONE, Trewin. Vida e Obra de Hieronymus Bosch. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997. p. 52-61.
Mestres da Pintura. São Paulo: Editora Abril, 1977. p. 05-19. 
CUMMING, Robert. Para Entender a Arte. São Paulo: Ática, 1998. p. 24-25.

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