terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Raquel

Raquel acordou inchada de tanto chorar. Na noite passada teve mais um ataque daqueles. Era quase meia-noite quando ouviu Love Till Us Apart no volume máximo, para que a voz de Curtis abafasse o som de seus soluços. Quis engolir o choro, mas ele veio como uma bomba, que explodiu estilhaçando-a em pedaços. Suas marcas estão gravadas na parede do quarto.

De tempos em tempos ela tem isso: crises de choro que a fazem perder noites de sonhos, e no dia seguinte acorda como se tivesse sido espancada.

Raquel tem dezesseis anos.

Ela quer ser normal, quer ser igual as suas colegas de escola, que a cada dia estão mais magras e confiantes. Mas acordou pesada. Gorda. Feia. Como irá à escola deste jeito, inchada e triste como um pokemón?

Para enfrentar a batalha: maquiagem, brincos e roupa preta – suas armas. Armada, Raquel toma o café da manhã: dois goles de leite com Nescau e uma bolacha de água e sal. Está pronta. Sai de casa sem levar guarda-chuva.

Ontem, Raquel desejou sumir. Perguntou à mãe se é comum sentir tanta tristeza, e ouviu que chorar faz parte da vida. Então, Raquel segue enfrentando crises constantes de choro, que a fazem perder noites de sonhos. 

Raquel tem vinte e um anos.

Acordou tonta de tanto chorar. Na noite passada teve mais um daqueles ataques. Eram duas horas da manhã quando ouviu All Apologies no volume exato para que as palavras de Kurt sossegassem o ritmo de seus soluços. Quis organizar seus sentimentos, mas eles vieram como um trator, esmigalhando seus ossos. Sua imagem está estampada no chão do quarto.

De tempos em tempos ela tem isso: crises de choro que a fazem perder noites de sono, e no dia seguinte acorda como se estivesse doente.

Raquel quer ser alegre, quer ser igual as suas colegas de faculdade, que a cada dia estão mais lisas e confiantes. Mas acordou descabelada. Crespa. Estranha. Como irá à faculdade deste jeito, com os cabelos em pé e sofrendo feito Edward, o mãos de tesoura?

Para enfrentar a batalha: escova, brincos e roupa larga – suas armas. Armada, Raquel toma o café da manhã: dois goles de coca-cola e meio Marlboro vermelho. Está pronta. Sai de casa esquecendo que é dia de prova.

Ontem, Raquel desejou morrer. Pediu à psicanalista uma pílula anti-sofrimento, e ouviu que sofrer faz parte do processo. Então, Raquel segue enfrentando crises periódicas de choro, que a fazem perder noites de descanso. 

Raquel tem trinta e dois anos. 

Acordou cansada de tanto chorar. Na noite passada teve outro ataque. Eram quatro horas da manhã quando ouviu Tomorrow Never Knows num volume bem baixinho, para que a guitarra de George distorcesse sua dor. Quis acalmar seus pensamentos, mas eles vieram como navalhas, cortando sua alma. Sua energia está espalhada pelos quatro cantos da casa.

De tempos em tempos ela tem isso: crises de choro que a fazem perder noites de paz, e no dia seguinte acorda como se estivesse de ressaca.

Raquel quer ser equilibrada, quer ser igual as suas colegas de trabalho, que a cada dia estão mais ricas e confiantes. Mas acordou sem dinheiro para pegar um táxi. Pobre. Gasta. Terá de trabalhar vazia como a garrafa d’água que mora na sua geladeira.

Para enfrentar a batalha: perfume, brincos e vale-transporte – suas armas. Armada, Raquel toma o café da manhã: dois goles de café preto e um Marlboro Light inteiro. Está pronta. Sai de casa batendo a porta sem levar a chave.

Ontem, Raquel desejou matar. Consultou no Google a pena para homicidas com nível superior, e descobriu que na prática é tudo a mesma merda. Então, Raquel segue enfrentando crises esporádicas de choro, que a fazem perder um pouco de si mesma. 

Raquel tem quarenta e cinco anos.

O som está ligado. Quase não se ouve, mas toca Triunfal. Piazzolla.   

Nenhum comentário:

Postar um comentário